Pareidolia, contemplação e criatividade
Observar as formas das nuvens é o mais conhecido tipo de pareidolia, um fenômeno psicológico que nos faz ver imagens em áreas disformes. Não apenas nuvens, mas também árvores, riachos, muros, rochas e objetos podem nos surpreender, por exemplo, com o surgimento de um rosto.
A pareidolia é entendida por alguns cientistas como herança evolutiva: um mecanismo de sobrevivência desenvolvido pelos nossos ancestrais durante milhares de anos convivendo com perigos naturais; resultado do esforço em caçar e não ser caçado.
Isso explicaria porque, diante de cenas cotidianas, a mente involuntariamente identifica padrões e nos surpreende com imagens estranhas. Ainda é característica útil, afinal, é mais vantajoso ver padrões que chamam atenção do que ser surpreendido por uma situação real de perigo.
O fenômeno está ligado à idade do observador. Quanto maior a idade, mais imagens percebidas. Assim, teoricamente, um adulto é capaz de ver mais coisas em formações de nuvens do que uma criança.
Entretanto, pessoas da mesma idade podem ver coisas diferentes, pois têm experiências, crenças e personalidades distintas. Assim, as imagens revelam algo sobre o observador. Por isso a pareidolia é entendida por psicólogos como fonte de acesso às características individuais. O Teste de Rorschach é um exemplo disso.
“Torrada da Virgem Maria” vendida por US$ 28.000 em site de leilão: religiosos podem interpretar imagens aleatórias como sinais divinos, contudo, a pareidolia apenas reflete as crenças do observador. Na índia, cabeças de elefante que surgem em árvores e rochas são interpretadas como manifestações do deus Ganesha . AMPLIAR IMAGEM
O Teste de Rorschach é um tipo de pareidolia. Pranchas com borrões de tinta simétricos são utilizadas para obter respostas do observador e identificar distúrbios psicológicos. As respostas, teoricamente, mostram a dinâmica interna do indivíduo. Cada observador pode ver imagens diferentes no mesmo borrão, pois o teste reflete interpretações individuais da realidade. AMPLIAR IMAGEM.
A pareidolia também ocorre com sons. Escutar vozes pode ser o resultado da mente tentando identificar ruídos. As famosas “mensagens ocultas” em LP’s girados ao contrário são exemplos disso.
Leonardo da Vinci e a Pareidolia
Bem antes de ser estudada pela ciência, a pareidolia já era conhecida e explorada por Leonardo da Vinci, um dos artistas mais brilhantes e visionários da história. Ela fazia parte de seu processo criativo, como ele mesmo explica:
Se você observar qualquer parede com várias manchas ou mistura de diferentes tipos de pedras, e estiver buscando criar algum cenário, poderá ver semelhança com várias paisagens diferentes adornadas com montanhas, rios, rochas, árvores, planícies, amplos vales e vários grupos de colinas. Você também poderá ver diversos combates e figuras em movimento, expressões estranhas de rostos, roupas estranhas e um número infinito de coisas que você poderá reduzir em formas separadas e bem concebidas ” — Leonardo da Vinci
Leonardo, desde jovem, se dedicava à contemplação de nuvens e paisagens. Para ele, essa atividade seria fonte de inspiração.
Em um dos poucos relatos de sua juventude, ele escreveu como ficou observando a entrada de uma caverna, mergulhado nos sentimentos de medo e desejo que ela transmitia.
Pareidolia: da contemplação à criatividade
Atualmente, muitos artistas utilizam a pareidolia, e alguns reclamam do fato dela ser difundida como brincadeira para identificar rostos em objetos, minimizando as possibilidades criativas desse fenômeno.
Adotada como exercício de contemplação e imaginação, pode ser mais ampla e profunda, fazendo emergir memórias esquecidas ou formar novas ideias.
Não é necessário buscar imagens bem delineadas: a imaginação pode fazer uma leve semelhança criar uma imagem na mente. É uma questão de disposição. O resultado sempre terá alguma relação com aspectos da personalidade e, possivelmente, pode revelar conteúdos do inconsciente do observador.
O projetista de brinquedos Rob Sayegh Jr utiliza nuvens para criar personagens. A nuvem não precisa necessariamente parecer alguma coisa: nesse caso, ela é apenas apoio para a imaginação. AMPLIAR IMAGEM
A aleatoriedade da pareidolia permite a fuga do estereótipo e o surgimento de ideias, imagens, sentimentos e lembranças que não iriam ocorrer normalmente na rotina diária.
Porém, conforme o próprio Leonardo da Vinci sugere, ela está relacionada com a intenção, portanto, é necessário olhar o ambiente dando vazão à imaginação.
Se deixarmos de lado a interpretação superficial, a superstição e o estereótipo, a pareidolia pode tornar-se não apenas fonte de criatividade, mas também de descontração em meio à rotina.
Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.
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