A frase “Deus está morto”, do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844 – 1900), é muitas vezes entendida como mera provocação ao cristianismo, contudo, é uma conclusão baseada na investigação da cultura ocidental desde a Grécia Antiga até a Era Moderna.
Representa, em uma frase, a decadência filosófica, cultural e religiosa da modernidade.
A “morte de Deus” surge pela primeira vez na obra A Gaia Ciência (1882), e afirma: fomos nós mesmos que matamos Deus. Conseguimos o feito impossível “de esvaziar o mar e apagar o horizonte”.
O homem louco se lançou no meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, exclamou, “…vou lhes dizer! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte?“
— Nietzsche, Gaia Ciência
Como análise histórica, a morte de Deus não é apenas crítica às religiões, pois esse “assassinato”, segundo Nietzsche, ocorreu antes do surgimento do cristianismo, que já teria nascido como adoração a um Deus morto.
O cristianismo seria apenas reflexo da dessacralização do mundo que teve início principalmente com Platão. Assim, “Deus está morto” é muito mais um ataque à filosofia de Platão e à forma como ela se refletiu na Era Moderna.
Não é, como muitos interpretam, apenas abandono das explicações religiosas em prol das explicações científicas ou racionais. É algo mais amplo e diz respeito à perda de sentido da vida e da realidade do homem moderno.
“O homem moderno é tudo aquilo que não sabe para o que se voltar. A modernidade o tornou doente. O progresso é uma ideia moderna, ou seja, uma ideia falsa. Não representa uma evolução em direção ao melhor, ao mais forte, ao mais elevado.
— Nietzsche, O Anticristo
Mas, afinal, como se deu esse “assassinato do sagrado?”. Nietzsche recorre aos gregos antigos: suas relações com os deuses (com o sagrado) traziam sentido ao mundo, desenvolvendo no homem o desejo pela vida, pela força e pela realização. Essa relação divina era característica de todas as sociedades antigas.
Depois de Platão, a realidade torna-se sombra imperfeita de um mundo espiritual e eterno (conforme surge no Mito da Caverna). Essa ideia prosseguiu na filosofia medieval com Agostinho, que declarou: o Sumo Bem de Platão era uma visão do Deus cristão, e o Logos (razão universal) dos filósofos gregos havia encarnado em Cristo.
Desta forma, a filosofia de Platão foi cristianizada, estabelecendo as bases filosóficas que ajudaram a consolidar o cristianismo e levou à derrocada as antigas relações divinas.
“A religiosidade dos gregos antigos correspondia à gratidão de homens nobres diante na natureza e da vida. Mais tarde, quando o populacho preponderou na Grécia, surgiu o medo da religião. Preparava-se o cristianismo.”
— Nietzsche, Além do Bem e do Mal
Assim, os homens voltaram o olhar para esse “outro mundo” na esperança da vida eterna, passando a desprezar este “mundo de sombras” (em Platão) ou este “vale de lágrimas” (no cristianismo).
Segundo Nietzsche, essa falsa noção de realidade, simbolizada por imagens que desvalorizam o mundo, impregnou a cultura ocidental como uma doença, tornando os homens fracos, incapazes e invejosos.
O resultado foi o esvaziamento de sentido da vida. Os homens não apenas assumiram religiões que se voltam para um mundo imaginário (passando a desprezar a realidade) como depositaram na ciência a esperança de verdade racional e objetiva (desconsiderando que conquistas científicas muitas vezes têm origem na inspiração caótica). Na modernidade, há sempre algo incompleto: os religiosos desprezam o mundo e os cientistas desprezam o sagrado.
Para Nietzsche, o homem possui duas dimensões complementares: a racional (que produz a ordem) e a irracional (a imaginação caótica e misteriosa). Chamou essas dimensões de apolínea e dionisíaca. Em todas as culturas antigas essas forças atuavam de forma integrada.
Posteriormente, essa perspectiva de Nietzsche inspirou Sigmund Freud na criação da Teoria do Inconsciente e na terapia através da fala. Freud também percebeu no simbolismo dos mitos uma forma de entender a natureza humana, que é mistério até hoje.
No passado, as imagens caóticas (representadas pelos mitos e seres sobrenaturais) inspiravam a dimensão racional do homem na criação da literatura, da arte, da técnica e até mesmo da filosofia.
Por exemplo: Tales de Mileto, o primeiro dos filósofos, declarou que“Tudo está cheio de deuses!” e, para estranhamento da mentalidade moderna, também realizou as primeiras reflexões filosóficas na história da humanidade em bases puramente racionais.
O físico alemão Albert Einstein é outro exemplo: disse que a imaginação é mais importante que a inteligência e que a Teoria da Relatividade nasceu quando ele se imaginou viajando num raio de luz. Sobre essas imagens arquetípicas, Nietzsche fala em Assim Falava Zaratustra:
Meus irmãos, prestai atenção a qualquer um dos momentos em que vosso espírito quer falar em imagens. Ali está a fonte de vossa virtude. É então que vosso corpo se eleva e ressuscita. Com sua alegria arrebata o espírito para que se torne aquele que cria, que avalia, que ama e benfeitor de todas as coisas.
— Nietzsche, Assim Falava Zaratustra
A morte de Deus, que se delineou após Platão, representa a perda desse equilíbrio. Até mesmo a forma como a ciência é entendida atualmente é reflexo da perda de confiança na dimensão caótica e irracional do homem, que antes era vista como sagrada e inspiradora.
“Deus está morto”, em Nietzsche, representa também a ascensão dos fracos: indivíduo moralista, fiscalizador e medíocre (não necessariamente religioso) que, por puro ressentimento, busca regular os fortes (os inspirados) com uma lista de regras mortas: pecados, revelações divinas ou mesmo verdades científicas.
Os fortes, por sua vez, são os poucos que ainda possuem relação com o sagrado e com o mistério (com a dimensão caótica). São os únicos capazes de dar sentido à vida e realizar grandes obras. Estão inteiramente envolvidos com sua produção criativa e afirmação da vida. Por isso não conseguem compreender o que os fracos dizem e se afastam das crenças de massa (o que, para Nietzsche, inclui não apenas religião, mas também política).
“E o que faz o santo na floresta?” – perguntou Zaratustra. O santo respondeu: “Componho canções e passo a cantá-las. Enquanto faço canções, rio, choro e murmuro. Essa é minha maneira de louvar a Deus. Mas como presente, o que me trazes?”. Ao ouvir essas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse: “Deixa-me partir depressa, por receio de não lhe tirar coisa alguma!” E assim se separaram, o velho e o homem feito, rindo como riem dois garotos. Mas, quando Zaratustra ficou só, falou assim ao seu coração: “Será possível! Este santo ancião, em sua floresta, ainda não ouviu dizer que Deus está morto?”
— Nietzsche, Assim Falava Zaratustra
Tudo o que surgiu com o homem é ficção. Arte, cultura, religião, Deus e ciência são invenções nascidas da sua imensa criatividade — hoje subestimada pelos incapazes de criar, os fracos, sem imaginação ou inspiração, que atribuem exclusivamente a Deus toda grande criação humana.
Segundo Nietzsche, a própria razão humana não pode dar conta do mundo sem recriá-lo incessantemente através da integração entre caos e ordem, razão e desrazão. O homem é o grande criador do mundo, o maior de todos os artistas. No momento em que deixa de ser criador, morre tudo o que é sublime; morre o fluxo criativo que nos levaria a destinos cada vez mais elevados.
Por isso, “Deus está morto” é a crítica fundamental de Nietzsche à modernidade, pois entronou incapazes e adoeceu os homens; sacralizou regras morais e religiões mortas. Passou a confiar em uma razão incompleta. Assassinou toda inspiração “venerando cadáveres que esquecemos de enterrar”, deixando de lado a própria vida e seu eterno devir.
Autor: Alfredo Carneiro