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Marketing Digital e Cibercultura: perspectivas filosóficas

A cibercultura é um campo de pesquisa que se volta para as transformações ocorridas nas sociedades com o surgimento da tecnologia digital. Dentre essas transformações, a perda de poder dos meios tradicionais de comunicação — como rádio, TV, jornais e revistas — é uma das mais evidentes. Ainda que a mídia tradicional continue influente, a facilidade de produção e distribuição de conteúdo fez surgir influenciadores individuais que passaram a disputar espaço com grandes emissoras. Da mesma forma, o marketing tradicional, normalmente ancorado nos grandes meios de comunicação, perdeu espaço para o marketing digital.

O marketing digital é o marketing do anárquico e caótico mundo virtual que surgiu com a internet; faz parte das transformações sociais causadas pelo avanço da tecnologia digital e possui características radicalmente diferentes do marketing tradicional.

Tudo isso parece democrático e promissor, afinal, atualmente inúmeros influenciadores individuais se beneficiam com o marketing digital. Todavia, existe a possibilidade pessimista de estarmos caminhando para um cenário de domínio quase absoluto das corporações de tecnologia. Esse possível futuro sombrio, entretanto, não seria “culpa” da tecnologia. Ele apenas revelaria traços da natureza humana.

Por isso este vasto cenário virtual abriu novos campos de investigação para a filosofia, pois expõe a natureza humana em uma vitrine coletiva. Diante do quadro exposto todos os dias nas redes sociais, caberia a nós a responsabilidade de decidir coletivamente nossos caminhos. Sobre esse crescimento acelerado da internet, o filósofo Pierre Levy, um dos pioneiros da cibercultura, afirmou em seu livro Cibercultura:

Meu otimismo não promete que a internet resolverá todos os problemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço resulta em um movimento internacional de jovens ávidos para experimentar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos vivenciando a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas desse espaço dos planos econômico, político, cultural e humano.

Pierre Levy

O que é Marketing Digital?


Marketing Digital O que é?

O marketing digital representa uma nova forma de relação com os consumidores, pautado por redes sociais, e-mails e aplicativos que permitem a relação direta com o público, além de gerar estatísticas automáticas sobre preferências pessoais, horários, faixa etária, localização, etc.

Entretanto, diferente do que ocorria no passado, esses dados estão disponíveis para qualquer um. Estatísticas de marketing, antes caras e restritas às grandes empresas, se tornaram gratuitas e públicas. Outra característica fundamental deste “admirável mundo novo” é a possibilidade de interação do público. Muitas vezes essa interação é mais importante e informativa que o conteúdo principal, o que demonstra que o próprio consumidor passou a ser gerador de conteúdo.

Tudo isso, aliado à acessibilidade cada vez maior de celulares e computadores, promoveu a ascensão de influenciadores sem a “aprovação” dos meios tradicionais de comunicação. Modificou também a forma de lidar com o mercado consumidor — que agora pode criticar ou elogiar de forma pública, definindo rapidamente o sucesso ou o fracasso de uma campanha.

Por isso o marketing digital é considerado uma forma ativa de divulgação, enquanto o marketing tradicional  sempre foi pautado pela passividade e controle, afinal, existia pouca possibilidade de interação com artigos de revistas e reportagens de TV, normalmente feitas por cartas e, mesmo assim, devidamente filtradas pelos produtores.

De acordo com Pierre Levy, essa desfragmentação do mundo tradicional tem grande impacto cultural, uma vez que grandes meios de comunicação condicionavam a cultura, selecionavam artistas e concentravam poder econômico.  Atualmente, devido à popularização da tecnologia digital, iniciativas individuais passaram a divulgar ideias, artistas e produtos sem “autorização” das grandes emissoras de TV.

Um aspecto interessante é perceber o quanto grandes emissoras e gravadoras determinavam quais seriam os produtos, serviços, ideias e artistas influentes, condicionando o público com opções limitadas, tal como já havia sido apontado por Adorno e Hockheimer no texto A Indústria Cultural.

Atualmente, grandes emissoras procuram artistas que ficam conhecidos através das redes sociais, citando apenas um exemplo. E, muitas vezes, artistas e influenciadores não pretendem fazer acordos com emissoras, pois alguns deles já possuem grande poder de divulgação.

Isso não significa que grandes emissoras irão enfraquecer, pois elas mesmas podem fazer marketing digital com mais eficiência e poder que uma única pessoa. Contudo, o surgimento de influenciadores digitais criou um fenômeno que não seria possível com a exclusividade que existia no mundo tradicional da comunicação. Também não se trata de fazer parecer que o marketing digital é algo fácil e simples, mas sim mostrar que representa a desfragmentação do marketing tradicional. Na prática, o marketing digital é complexo e trabalhoso; está vinculado ao talento e esforço individuaiscomo qualquer atividade humana.

Um exemplo desse fenômeno são empresas de cosméticos que utilizam youtubers para divulgar produtos por um custo menor e com maior eficiência. Diferente da TV, os influenciadores digitais possuem um público bem definido de consumidores, também chamado de “nicho de mercado”. Grandes empresas perceberam que podem investir menos com mais resultado, ocasionando perda de receita das emissoras e programas de TV.  Outro exemplo é a venda e e-books sem apoio de grandes editoras. E, claro, os cursos de marketing digital são os mais populares, pois trata-se de uma nova “corrida do ouro”.

Todavia, ainda que a ascensão de iniciativas individuas pareça promissora, a internet é também espaço de desinformação, alienação e conflito, pois permite a disseminação de golpes sofisticados, fakenews, racismo, xenofobia, intolerância religiosa, vício em jogos, etc. Dentro deste cenário sombrio (semelhante aos filmes cyberpunk) o marketing digital também está sendo utilizado para disseminar ideias sombrias. Contudo, a internet apenas potencializou o que já existia nas sociedades.

O desenvolvimento rápido da tecnologia digital também criou corporações de software, aplicativos e redes sociais que dominaram o mundo virtual, concentrando poder, influência e controle. Esse fato pode gerar um cenário pessimista, pois se antes emissoras controlavam a cultura, hoje empresas de tecnologia podem assumir essa tarefa. Se as promessas do marketing digital pareceram otimistas até agora, o controle corporativo do mundo virtual é uma perspectiva pessimista.

O que dizem os filósofos?


Ainda que a tecnologia digital seja um mundo de oportunidades, com ela surgem questões que são um convite à reflexão. Um exemplo é dado pelo autor Yuval Harari em seu livro Sapiens:

Uma das poucas regras de ouro da história é que os luxos tendem a se transformar em necessidades, gerando novas obrigações. […] No decorrer das últimas décadas, inventamos inúmeras coisas que poupam nosso tempo e supostamente tornariam nossas vidas mais agradáveis. Máquinas de lavar roupas, aspiradores de pó, telefones, celulares, computadores, e-mail. Antes, era bastante trabalhoso escrever uma carta, endereçar, selar o envelope e levá-lo até os correios. Era necessário dias ou semanas, talvez meses, para receber uma resposta. Hoje, posso enviar um e-mail para o outro lado do mundo e receber uma resposta minutos depois. Poupei todo aquele tempo e trabalho, mas será que levo uma vida mais tranquila?

Yuval Harari

Além do exemplo citado, o aumento da ansiedade, do imediatismo e a perda da intimidade são problemas trazidos pela consolidação da cibercultura. Não conseguimos lidar com o volume de informação apresentado todos os dias, nos sentimos impelidos a “estar bem informados” e “participar do debate”. No exemplo da carta escrita, se escolhiam palavras; não havia tanto espaço; exigia-se habilidade artesanal, paciência e, por fim, o destinatário era pessoa relevante (pelo menos para quem escrevia).

Atualmente, respondemos comentários para desconhecidos, nos sobram argumentos, crítica e agressividade, pois enviar mensagens tornou-se fácil e rápido; não depende de quantidade de papel e tinta. Provavelmente, a maioria dos comentários das redes sociais e e-mails não seriam escritos se exigisse qualquer trabalho manual mais elaborado.

O marketing digital é o marketing deste mundo hipnótico, ansioso e imediatista de telas brilhantes. Gera desejo constante pelas novidades que surgem a cada momento; aumentam o interesse por várias coisas ao mesmo tempo e inundam a internet com propagandas, alertas persuasivos e promessas. Em muitos casos, uma compra não se trata de algo que levará semanas para chegar e será desfrutado por meses ou anos, mas de um produto digital que pode ser baixado ou acessado tão logo se pague por ele. Mesmo que seja a compra de um produto físico, normalmente não é feito para durar muito, mas tão somente matar a curiosidade, sendo logo deixado de lado.

Tudo isso, no curto e médio prazo, provoca o esgotamento nervoso que já foi percebido por vários pesquisadores. Alertas constantes de notícias e propagandas nos levam de um ponto a outro sem parar; debates estressantes e infrutíferos em redes sociais geram mais alertas de mensagens; provocações e ofensas nos transportam imediatamente da tranquilidade ao aborrecimento. É quase impossível soltar o celular, pois há sempre urgência de algo. A síndrome de bournout já se tornou uma característica nas novas gerações.

Para muitos filósofos, toda essa rapidez, interação e ausência de esforço manual pode trazer consequências drásticas para a humanidade, como as reflexões do filósofo Zigmunt Bauman sobre a sociedade vazia de sentido causada pela necessidade de eterna satisfação de desejos. Yuval Harari, por sua vez, afirma que a humanidade está perdendo as habilidades evolutivas que levaram milhares de anos para serem desenvolvidas.

Essa conjuntura ameaçadora, todavia, não significa que a tecnologia seja algo nocivo. Significa apenas que a forma como é conduzida fala muito sobre a natureza humana. O avanço exorbitante da internet e do marketing digital não são “responsáveis” pela alienação, ansiedade e consumismo, mas, como foi dito anteriormente, apenas refletem problemas que já estavam instalados nas sociedades modernas e foram potencializados pela cibercultura.

Bem antes da internet, o filósofo francês Jean-Paul Sartre já havia percebido nossa tendência de nunca assumir responsabilidades, sempre culpando os outros por todos os males. Com a chegada da cibercultura, isso não mudou. “O inferno são outros outros” agora se aplica à tecnologia. É mais fácil culpar a internet, o marketing digital e as redes sociais do que se dedicar a uma reflexão acerca desses fenômenos.

Isso mostra que, mesmo com a experiência coletiva da internet, fugimos de uma reflexão mais sincera sobre nós mesmos. Apesar disso, de acordo com a perspectiva otimista de Pierre Levy, ainda que a cibercultura potencialize os problemas das sociedades, também carrega de forma latente a inteligência coletiva que pode nos auxiliar na solução desses problemas.

AutorAlfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.

Referência Bibliográfica

  • LÉVY, Pierre. CIBERCULTURA. São Paulo: Editora 34, 1999.
  • Harari, Yuval Noah. Sapiens. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.