Sete Anos no Tibete: uma aventura existencialista
Se você não assistiu Sete Anos no Tibete e não quer spoiler, não prossiga esta leitura. Este é um texto filosófico, mais especificamente sobre o retorno de Henrich Harrer à Áustria em 1951. Minha intenção é utilizar o filme para falar da filosofia existencialista, uma vez que considero a saga deste personagem uma experiência de reconhecimento de suas falhas. Portanto, não é tanto um post sobre o filme, mas sobre a perspectiva existencialista do filme. Vale lembrar que o livro Sete Anos no Tibete, escrito por Harrer, é bem diferente do filme. CONTÉM SPOILER.
O início da aventura
Henrich Harrer foi de fato um alpinista austríaco feito prisioneiro pelos ingleses após o início da Segunda Guerra, enquanto tentava escalar a montanha Nanga Parbat no Himalaia. Conseguiu fugir e, após uma sofrida peregrinação de quase dois anos, foi recebido em Lhasa como exilado de guerra. Permaneceu lá durante todo o período da guerra, onde teve acesso à uma cultura ainda pouco conhecida pelos Europeus. Registrou sua aventura no livro Sete Anos no Tibete.
Foi professor do jovem Dalai Lama, com quem desenvolveu uma relação de amizade e respeito. O diretor do filme criou o personagem do filho de Harrer (que não existe no livro) para enfatizar sua transformação, contudo, o que muitos chamam de transformação espiritual pode ser também uma profunda tomada de consciência de nossas ações.
“O homem é o que ele faz de si mesmo”: uma breve introdução ao existencialismo
Para a grande maioria das pessoas, o mundo deve adaptar-se aos seus pensamentos (muitas vezes representados pela cultura, religião, ideologia, tradições, costumes, etc..), entretanto, para os mais observadores ocorre o contrário: eles adaptam seus pensamentos ao mundo. Assim como Harrer no início de sua aventura, normalmente as pessoas responsabilizam os outros pelas coisas ruins que lhes acontecem.
O filósofo francês Jean-Paul Sartre alertou sobre essa falha moral. Dentro da perspectiva existencialista, o homem é livre apenas quando assume a responsabilidade pelos seus atos. Quando responsabiliza os outros, é apenas um “escravo do destino”, castigado por Deus e injustiçado pelo mundo. O homem é o que ele faz de si mesmo, é responsável por tudo o que faz. Essa é uma das bases fundamentais do existencialismo de Sartre.
Querer que o mundo seja aquilo que pensamos é fonte de angústia e ódio. Não por acaso líderes (políticos e religiosos) gesticulam com raiva ao criticar comportamentos que desaprovam, afinal, as pessoas (e o mundo) deveriam se comportar como eles desejam, e quando isso não ocorre, nasce o ódio do mundo e das pessoas que não fazem “o que é certo” ou “o que Deus quer.”
É comum também nessas pessoas que suas vontades se identifiquem com a “vontade de Deus.” Tal distanciamento da realidade é fonte de conflitos desnecessários. Essa falha do pensamento ocorre também nas pessoas ideológicas e rígidas, que não aceitam algo fora de uma determinada tradição ou linha de pensamento.
Acontece que o mundo não será nunca o que eles desejam. Os líderes mais sábios e até mesmo executivos de sucesso fazem o caminho inverso: se aproximam da realidade e criam pensamentos que estão de acordo com o mundo. E isso vale não apenas para líderes que buscam estratégias eficientes, mas também para todos que buscam viver uma vida autêntica.
Adequar o pensamento ao mundo é também terapêutico e calmante. De certa forma o mundo revela-se aos bons observadores, e torna-se mais fácil remar a favor da maré. Não podemos, contudo, observar o mundo se estamos sempre mergulhados em nosso próprio “mundo” interior formado muitas vezes por ideias falsas. Esta é, para mim, uma das principais mensagens do filme Sete Anos no Tibete.
Sete Anos no Tibete: do egoísmo à responsabilidade
No filme, durante os anos em que ficou exilado, a esposa de Harrer (que estava grávida) pede divórcio e se casa com um amigo seu. Transtornado e com raiva, tenta fugir várias vezes do campo de concentração onde estava prisioneiro. Recebe ajuda do amigo Peter Aufschnaiter para fugir, mas ainda mantinha uma postura egoísta e ressentida.
Somente após tornar-se professor em Lhasa do atual Dalai Lama, Harrer começa a refletir sobre tudo o que lhe aconteceu. Seu egocentrismo começa a se dissolver na percepção da responsabilidade pessoal. Seu pensamento começa a adequar-se ao mundo, e não mais o contrário, como é o caso da maioria das pessoas (e dele mesmo quando chegou em Lhasa).
O mundo revelou-se a Heinrich Harrer, que deixou sua raiva de lado e, em vez de ficar com ódio dos outros, resolve perdoar a si mesmo. Raiva, ódio, ressentimento e desejo de vingança desaparecem quando percebemos que muitos de nossos sofrimentos são consequências de nossos próprios atos.
Assim, como um homem esclarecido acerca de suas ações, lhe restava agora esperar que os outros o perdoassem. Ele deveria então passar a plantar aquilo que desejava colher: tolerância, amor e entendimento, coisas que aprendeu enquanto ensinava o menino Dalai Lama e assistia à dominação violenta e intolerante da China sobre o povo Tibetano.
Compreensão, amizade e responsabilidade
Diversas vezes sofremos porque queremos ser amados e reconhecidos. Pouco importa, para o jovem, o carro sem a namorada ou alguns amigos, o balcão do bar sem o companheiro, ser pai ou mãe sem receber o amor do filho. “A felicidade só é real quando compartilhada“, escreveu pela última vez Christopher McCandless em seu caderno. Assim, para que sejamos amados devemos desenvolver em nós algo digno de ser amado e compartilhado.
Essa amarga filosofia existencialista, que afirma que somos responsáveis por nossos atos, torna-se uma doce filosofia para os generosos, os carinhosos e aqueles que se sacrificam pelos outros. Harrer queria o amor do filho que abandonou, queria também e uma relação harmônica com sua ex-esposa, então, ele já sabia o que deveria fazer.
Após sete anos no Tibete, Harrer deve encarar os fatos. Saiu da Áustria como um homem arrogante, mesquinho e egoísta. Deixou a esposa grávida para dar à luz sozinha em nome da glória pessoal. Seria normal ser rejeitado pelo filho e recebido de forma apreensiva pela ex-esposa e pelo amigo que casara com ela e cuidou de seu filho, afinal, foi tudo o que ele plantou, e não o que fizeram com ele.
Contudo, uma vez que a solidão, o sofrimento, a reflexão e até mesmo o próprio Dalai Lama dissolveram a estupidez do egoísmo e a cegueira de ser “vítima dos outros”, Heinrich Harrer estava, enfim, em paz consigo mesmo. Ele não deveria perdoar a ex-esposa e o amigo, devia perdoar a si mesmo. Um egoísta poderia ressentir-se, posto que o egoísta só vê seu próprio sofrimento, mas para alguém consciente de suas ações, Harrer poderia (e deveria) apenas sentir vergonha de si mesmo.
No momento do reencontro, quando a porta se abre, o comportamento de Harrer foi de gentileza, e até mesmo de certa vergonha. E a gentileza é um tipo de sabedoria, ela é quase um pedido de desculpas dos mais sábios. Com seu filho, foi completamente tolerante e aceitou a rejeição inicial, não sem antes presenteá-lo com algo de grande valor simbólico: uma caixa de musica, presente de despedida do próprio Dalai Lama. É uma cena muito metafórica, pois em vez de forçar e obrigar o filho, deixou algo muito valioso e foi embora sem falar nada, já que o próprio filho não queria falar com ele.
Os egoístas e arrogantes querem sempre impor seu amor e realizar suas vontades, mas o sábio assume seus “pecados”, corrige suas ações, dá o que ele tem de melhor e espera pacientemente pelas pessoas. Seu filho posteriormente vai até ele, pois aqueles que são tolerantes e gentis acabam tornando-se companhias autênticas, alegres e prazerosas.
“Que todos os viajantes encontrem a felicidade”
Quando Harrer se despede do jovem Dalai Lama, ainda em Lhasa, o líder espiritual do Tibete transmite seus sinceros desejos na forma da seguinte oração, que é também uma das cenas mais belas de Sete Anos no Tibete:
Que todos os viajantes encontrem a felicidade onde quer que vão. Que sem nenhum esforço eles realizem seus objetivos. E que, quando tiverem retornado em segurança para a costa, que eles sejam alegremente reunidos com seus parentes.
O desejo do Dalai Lama é uma apologia à sabedoria, pois atingir os objetivos sem esforços é privilégio apenas daqueles que conhecem o espírito do mundo. Somos lançados no mundo em uma grande aventura de autoconhecimento e, infelizmente, conhecer a si mesmo raras vezes acontece sem sofrimento ou sem magoar os outros.
Encontrar a felicidade onde quer que se vá significa que a felicidade está dentro do próprio viajante. A alegria de se reunir com seus parentes e amigos só é possível para aqueles que sabem reconhecer seu erros, assim, conseguem realmente distribuir alegria e amor. Conseguem ser queridos e desejados.
Como afirmado anteriormente, a filosofia existencialista pode ser doce para aqueles que plantam aquilo que desejam colher, e amarga para aqueles que se recusam a aceitar seus erros e fazem do mundo seu algoz e sua maior desculpa. O filme Sete Anos no Tibete narra uma viagem que, de certa forma, todos nós fazemos.
Autor: Alfredo Carneiro