Pré-socráticos: do mito ao logos ou a origem da filosofia
A filosofia nasceu com o surgimento de uma nova forma de investigar a realidade (physis). O pensamento filosófico representou uma ruptura com a tradição mitológica, que explicava os fenômenos da natureza, as estruturas sociais e outros acontecimentos por meio da ação dos deuses.
O verão e a primavera, por exemplo, eram causados pela visita de Perséfone ao Olimpo, e sua volta ao reino de Hades tinha como efeito o outono e o inverno. A tempestade e o trovão eram causados por Zeus, deus dos raios e autoridade máxima entre os deuses. Os nobres gregos seriam descendentes dos deuses do Olimpo, portanto, tinham linhagem divina. Esses são exemplos do pensamento mítico que será superado pelos primeiros filósofos.
As primeiras investigações racionais
A investigação racional da physis, que tem sua origem com Tales de Mileto, inaugura uma postura investigativa que abandona, em certa medida, as explicações mitológicas.
A tradição filosófica, graças à obra de Aristóteles (que registrou o pensamento dos pré-socráticos), considera que Tales foi o primeiro a perguntar pelo princípio originário de todas as coisas (Arché).
Motivado pela admiração típica dos filósofos, Tales observou o movimento de geração e corrupção da natureza, e concluiu que na multiplicidade dos seres existe uma unidade, um elemento comum a todos. Através da indução, o primeiro filósofo avaliou casos particulares para concluir que a água é o princípio da existência, elemento sem o qual a physis não seria possível.
Percebe-se assim uma forma de investigar baseada na observação e no pensamento racional sem recorrer à mitologia. Os demais filósofos pré-socráticos seguirão o exemplo de Tales. Anaxímenes, Anaximandro, Parmênides, Heráclito e outros irão também investigar a natureza e chegar a outras respostas. Entre eles teremos ainda duas fases: uma que busca o princípio físico e outra conceitual, que investiga o ser.
A razão universal ou logos
Esses pensadores têm uma característica marcante: a ruptura com a mitologia, a investigação racional e a busca pela unidade na multiplicidade. Não são explicações que repousam na tradição simbólica de um povo, mas explicações de homens que não deram mais ouvidos ao mito, mas ao logos. Trata-se do início daquilo que será chamado, séculos depois, de pensamento científico.
Como exemplo, observe esta explicação de Anaximandro, que não recorre aos mitos para explicar o relâmpago:
Segundo Anaximandro, os ventos produzem-se quando os vapores mais sutis do ar se separam e quando são postos em movimento por congregação; a chuva resulta da exalação que se eleva das coisas que estão ao sol, e o relâmpago origina-se sempre que o vento se desencadeia e fende as nuvens. (HIPÓLITO apud REZENDE, 2008, pg. 22 )
Apesar disso, o pensamento mítico não foi totalmente abandonado. A riqueza simbólica dos mitos são um sofisticado recurso de linguagem para falar sobre coisas de difícil compreensão. Aquilo que pode ser compreendido pela razão é desmistificado (como o relâmpago).
Contudo, para aquilo que permanece mistério os mitos são ainda nosso melhor recurso. Talvez por isso Tales tenha afirmado que “tudo está cheio de Deuses“, e Heráclito, ao surpreender alguns convidados com a simplicidade de sua casa, afirmou: “mesmo aqui, os deuses estão presentes“.
O logos e o surgimento da Filosofia
Esse momento da história da humanidade, ocorrido na Grécia entre os séculos VII e V a.C, foi chamado de passagem do mito ao logos. O logos corresponde a uma racionalidade que governa a natureza, uma harmonia íntima que parece organizar a physis e que foi percebida pelos primeiros filósofos. Assim, os pré-socráticos passaram a “dar ouvidos ao logos“, e não mais à tradição mitológica. Essa forma de pensar marcou a civilização ocidental.
Aqui devemos tomar cuidado com o sentido da palavra logos, ora referindo-se a uma razão universal que ordena a realidade, ora referindo-se à linguagem e pensamento racional dos homens. Então, o logos como linguagem seria nada mais que o homem conseguindo exprimir essa racionalidade da natureza. A razão, portanto, não é uma característica propriamente humana.
Heráclito foi enfático nesse ponto ao afirmar que “dando ouvidos não a mim, mas ao logos, é certo afirmar que tudo é um“. Muitos séculos depois, Albert Einstein, um dos maiores cientistas da história, parece ter a mesma percepção de Heráclito ao afirmar que “sem a convicção de uma harmonia íntima do universo, não poderia haver ciência“.
O termo “pré-socrático” tornou-se pejorativo, pois seria uma filosofia inicial, ainda não amadurecida, que iria brilhar de fato apenas com Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas Nietzsche e Heidegger irão chamar a atenção para o vigor do pensamento desses filósofos e combater essa visão negativa.
Heidegger os chamou de “originários” e Nietzsche chegou a afirmar que a verdadeira filosofia era feita somente pelos pré-socráticos, pois valorizava a vida, o mundo e a riqueza simbólica dos mitos, enquanto que a filosofia iniciada com Platão seria um erro, pois voltava-se para um suposto mundo espiritual, desconectando o homem da realidade da vida, tornando-o fraco e doente.
Esse é apenas um panorama do pensamento desses filósofos incríveis, e um aprofundamento em suas filosofias leva-nos a perceber e contemplar a delicada harmonia que ordena a realidade. Assim como ocorreu com os primeiros filósofos, talvez as palavras e a razão humana não sejam suficientes. Talvez, como eles, sejamos obrigados a dizer: “Tudo está cheio de deuses“.
Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.
Referências Bibliográficas
- ROHDEN, Humberto. O Pensamento Filosófico da Antiguidade. São Paulo: Martin Claret, 2008
- REZENDE, Antônio. Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008
- SCHOPKE, Regina. Dicionário Filosófico. São Paulo: Martins, 2010
- NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas, Coleção Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978
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