O Anel de Giges: uma lenda sobre a moralidade
O Anel de Giges é um dilema ético que surge na obra “A República”, do filósofo grego Platão. A história apresenta um pastor chamado Giges que encontra um anel mágico que o torna invisível quando usado. Até então, Giges sempre agiu corretamente, porém, o poder do anel leva Giges a cometer vários crimes, incluindo o assassinato do rei e a sedução da rainha, tornando-se um tirano. A história levanta questões importantes sobre a moralidade.
Existem semelhanças notáveis entre O Senhor dos Anéis, do escritor britânico J. R. R. Tolkien, e a lenda do Anel de Giges. É provável que Tolkien tenha se inspirado em Platão, mas há uma diferença fundamental. Enquanto que na história de Tolkien o anel corrompe seu possuidor, em Platão o anel apenas revela a verdadeira natureza corrupta e perversa do ser humano.
A lenda do Anel de Giges afirma que, se as pessoas não tivessem que se preocupar com as consequências de suas ações — se não pudessem ser vistas cometendo crimes — elas se entregariam aos seus impulsos mais egoístas e mesquinhos. Desta forma, a moralidade seria uma convenção social seguida apenas porque os homens são obrigados a agir corretamente. Retirando o medo da punição, tanto o justo quanto o injusto irão agir de forma imoral.
A conclusão é que a moralidade não seria inerente ao ser humano, mas algo semelhante ao adestramento de animais. Quando Giges se viu livre de qualquer possibilidade de castigo, passou a cometer crimes cada vez maiores.
O texto de Platão demonstra ainda, em sua parte final, a diferença entre os comportamentos público e privado. Os homens exaltam publicamente as ações justas, mas, quando estão em seus ambientes privados, zombam de quem acredita nelas.
De acordo com a filosofia de Platão, apenas o verdadeiro filósofo é justo em qualquer circunstância, não se importando com punição, opiniões (doxa), bens materiais ou mesmo com sua própria vida, se for o caso. Isso ocorre porque a contemplação das essências, percebidas apenas pelos filósofos, torna clara a ilusão deste mundo e revela a verdade do bem e da justiça, sendo Sócrates o grande exemplo de Platão.
O Anel de Giges: texto do Livro II da República (359a – 360d)
Não podemos negar que há homens que, embora não cometam nenhuma injustiça, prefeririam ter o poder de fazê-lo impunemente, caso quisessem. Tomemos como exemplo o pastor Giges. Este, segundo a história, era um simples pastor ao serviço do rei da Lídia.
Um dia, porém, aconteceu que a terra tremeu e abriu-se um sulco no solo no lugar onde ele se encontrava pastoreando. Admirado, desceu ao fundo da abertura e encontrou, entre outras coisas, um cavalo de bronze, maior que um cavalo natural, e umas portas. Tendo aberto as portas, encontrou um corpo morto, maior que o corpo de um homem natural, e junto a ele um anel. Depois de ter retirado o anel do dedo do morto, saiu da abertura.
Com esse anel no dedo, foi assistir à assembleia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer a pedra do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali.
Assustado, apalpou novamente o anel, virou a pedra para fora e tomou-se visível. Logo em seguida repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam conversar com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder.
Agora suponha que existem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um e o injusto outro. É provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outra pessoa. Afinal, ele poderia tirar sem receio o que quisesse dos mercados e lojas, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, libertar outros da prisão e fazer o que quisesse, tornando-se igual a um deus entre os homens.
Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. Isso é uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que, aquele que se julga capaz de cometer a injustiça, comete-a.
Para todos os homens que creem em seus corações que a injustiça é deveras mais proveitosa ao indivíduo que a justiça, aquele que argumenta como eu fui supondo, dirá que eles estão certos. Se tu puderes imaginar alguém obtendo este poder de se tornar invisível, e nunca fazer nada errado ou tocar o que era de outrem, ele seria considerado pelos observadores como o mais miserável idiota, ainda que eles o elogiassem um para o outro, e mantivessem as aparências uns com os outros pelo medo de que eles também possam sofrer injustiça.
Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.