A grande inovação introduzida por Nicolau Copérnico (1473-1543) não foi propriamente a proposição do heliocentrismo, mas a abertura em direção à aplicação generalizada da matemática na ciência da natureza. O uso da matemática na ciência, em especial na astronomia, na ótica e na mecânica, não era novidade. Desde Pitágoras, passando por Platão, pelo neoplatonismo e chegando até o Renascimento, a ideia de que a matemática (entendida, na época, como geometria) tinha um papel importante no conhecimento da natureza, já havia sido afirmada por diversos filósofos.
No final da Idade Média, houve uma retomada do interesse pelo estudo da matemática e suas aplicações na ciência. Roger Bacon, por exemplo, no Século XIII, afirmava que a matemática é a porta e a chave para as demais ciências. No Renascimento, Leonardo da Vinci salientava o papel fundamental que tinha a matemática com relação a outras disciplinas.
Copérnico e a antiga visão de mundo
Uma das características fundamentais da visão antiga de mundo era a separação rígida entre a natureza terrestre (o mundo sublunar, ou seja, o planeta Terra que habitamos) e a natureza celeste (o mundo supralunar, composto pelos demais planetas, estrelas e outros corpos celestes). O mundo supralunar, de que se ocupa a astronomia, podia ser – e era de fato –, descrito em termos matemáticos.
Efetivamente, a astronomia, para os antigos, era um ramo da geometria (antes da invenção do telescópio, as possibilidades de observação e de investigação empírica dos astros eram muito limitadas: os astrônomos contavam apenas com seus próprios olhos). Mas se o mundo supralunar podia ser descrito matematicamente (geometricamente), o mesmo não se aplicava ao mundo sublunar. A divisão rígida entre as duas regiões – acima ou abaixo da Lua – implicava também uma restrição ao uso da matemática na ciência.
As implicações da proposta heliocêntrica
A proposta heliocêntrica de Copérnico atingia essa divisão diretamente. Inicialmente, Copérnico avança sua tese heliocêntrica como uma hipótese matemática: tomemos, como ponto de referência imóvel para calcular os movimentos dos astros, não a Terra, mas o Sol. O que se seguiria disso? Copérnico mostra que, disso se seguiria um sistema muito mais simples e preciso do que o sistema de Ptolomeu, que tomava como ponto de referência a Terra.
Note que, ao menos diretamente, Copérnico não quer afirmar uma hipótese física ou metafísica, ou seja, uma hipótese sobre como é, de fato, o universo. Quer, apenas, propor um sistema astronômico que seja mais simples na sua descrição e explicação dos movimentos celestes.
Se a astronomia é apenas um ramo da geometria, tanto faz se escolhemos o ponto A ou B como referência. Ou melhor, nossa escolha pelo ponto A ou B se dará não segundo critérios de realidade, mas segundo outros critérios – como, por exemplo, o da simplicidade. Se é mais simples explicar usando o ponto A e não o B, então escolhamos o ponto A.
O problema é que a hipótese heliocêntrica fatalmente faz surgir uma questão física, independentemente da atitude cautelosa tomada por Copérnico. A questão que essa postura de Copérnico fez surgir foi, justamente, se seria legítimo escolher o Sol, por exemplo, e não a Terra, como ponto fixo de referência para a astronomia. Geometricamente, a resposta é, claramente, sim. Mas, fisicamente ou mesmo metafisicamente, a resposta é mais complicada.
A física aristotélica, com sua distinção rígida entre os dois mundos (que tornava difícil ver a Terra como um astro entre outros), sugeria que não seria legítimo. A Bíblia também parece vedar essa possibilidade. E as próprias observações empíricas parecem sugerir que a Terra é imóvel, enquanto o Sol e os demais astros se movimentam no céu (note, mais uma vez, que, por um lado, os meios de observação eram muito limitados e que, por outro, uma compreensão mais adequada das propriedades do movimento só seria alcançada apenas com Galileu).
A matematização do mundo e a Filosofia Moderna
Colocando a Terra entre os astros, subvertendo a separação rígida entre mundo supralunar (com sua natureza essencialmente geométrica) e mundo sublunar, Copérnico lança a sugestão de que também o nosso planeta possui uma natureza geométrica. Essa sugestão tem um grande atrativo para os pensadores que vêem nas correntes neoplatônicas (com seu forte componente pitagórico), uma alternativa à física e à metafísica aristotélica.
No Renascimento, o neoplatonismo ganha novamente força entre os humanistas, até mesmo como parte de sua estratégia de oposição à filosofia aristotélico-tomista, que dominou o período final da Idade Média. Entre esses pensadores, simpáticos ao pitagorismo e ao neoplatonismo, encontramos, justamente, Johannes Kepler, o segundo grande personagem dessa revolução metafísica e epistemológica que deu origem à ciência moderna e que contribuiu para dar forma à filosofia moderna.
Graças a essa revolução científica (ou esta proposta heliocêntrica) iniciada com Copérnico e seguida por grandes nomes como Kepler e Galileu, a matemática passa a ser vista pelos filósofos modernos como uma referência segura para atingir um conhecimento não apenas da natureza, mas também de questões filosóficas.
René Descartes é considerado, neste aspecto, o maior nome da “matematização” da filosofia, inaugurando um método de investigação que buscava transportar para a filosofia a exatidão da matemática. Esta perspectiva cartesiana marcou o surgimento da Filosofia Moderna e delineou o futuro da investigação científica. Immanuel Kant, outro grande representante da Filosofia Moderna, seguindo esta tendência, irá chamar sua obra de “revolução copernicana” no conhecimento, referindo-se à mudança de perspectiva iniciada por Copérnico.
Referências Bibliográficas
- BURTT, Edwin A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: UnB, 1983.
- ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 2000.
- ABRANTES, Paulo. Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas: Papirus, 1998.
- COPLESTON, Frederick Charles. Historia de la filosofia. Barcelona: Ariel, 2004.