Schopenhauer e os anos selvagens da filosofia
Os anos selvagens da filosofia
“Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia” é o título do excelente livro do filósofo e escritor alemão Rüdiger-Safranski. Mas, quais são os anos “mais selvagens” da filosofia? Safranski considera que Immanuel Kant é o “parteiro” desses anos selvagens, que tiveram entre seus principais representantes Fichte, Marx, Hegel, Feuerbach e Schelling. Todos “pesos pesados” da filosofia que fizeram de Kant seu ponto de partida.
Kant promoveu, em sua época, uma verdadeira revolução ao afirmar que não conhecemos as coisas em si, mas apenas como elas surgem para nós na forma de fenômenos processados por nosso aparelho cognitivo. O Eu surge como vasto campo de pesquisa e um futuro otimista brilhava no horizonte. Realizaríamos as potencialidades da natureza humana. Um mundo novo surgia.
Os filósofos passaram não mais a observar as coisas, mas como conhecemos as coisas. A investigação voltou-se para o Eu. O mundo é nossa representação, então faríamos um mundo novo, onde seríamos criadores do nosso destino. Um vasto mundo inexplorado e selvagem se abria para os grandes pensadores. Esses são os anos mais selvagens da filosofia segundo Safranski. Era o início do século XIX.
Schopenhauer e a ilusão da razão e do “eu”
Schopenhauer, mesmo sendo dessa época, observava com pessimismo esse entusiasmo. Para ele uma força irracional e poderosa dominava o Eu e o mundo. Essa força era a vontade, a vontade irracional de viver e persistir custe o que custar. O Eu e a razão são marionetes da vontade. O mundo não é apenas representação (os fenômenos), mas vontade e representação. A relação conflituosa de Schopenhauer com esses “anos selvagens” é a linha mestra dessa obra de Safranski.
Nesses anos selvagens e ingênuos, somente Schopenhauer percebeu a verdadeira força que move do mundo. A razão, tão venerada pelos filósofos desse período, para Schopenhauer não passava de um “livro caixa” que registra entradas e saídas de dados. Ela tinha utilidade, mas era superestimada, como é até hoje apesar de Nietzsche e Freud. A razão funda a ciência, cura as doenças, constrói cidades e máquinas maravilhosas. Mas a vontade lança as bombas, declara as guerras, domina, destrói e mata. É vontade de poder (e de viver) que disfarça-se no discurso político e religioso e direciona a irracionalidade da razão. A vontade não é apenas a energia que impulsiona o poder, o ódio e o egoísmo, mas também comanda os sublimes atos de amor e entrega. Em tudo a vontade é força motriz. Tomado de maravilhamento filosófico, Schopenhauer afirmou a fragilidade da razão. Ela nunca esteve no controle. A razão é venerada pelos que pouco amaram ou pouco odiaram, pelos que nunca desejaram ardentemente. A vontade irracional é o que nos agarra à vida.
A revelação do Arsenal de Toulon
O livro narra a famosa visita do jovem Schopenhauer ao Arsenal de Toulon, na França, onde milhares de escravos eram mantidos aprisionados por correntes. Alguns acorrentados uns aos outros em uma condição deplorável. Muitos eram criminosos condenados a trabalhos forçados que nunca sairiam dali. Os escravos eram mantidos nas galés de navios desativados. Essa visão de horror e sofrimento marcou a filosofia de Schopenhauer. Como alguém pode se agarrar à vida naquelas condições? Toulon revelou a misteriosa força irracional que nos liga à vida. Esses escravos não eram diferentes de nós, que estamos acorrentados à frágil condição humana. Somos escravos das galés da vontade. Nossos discursos racionais apenas disfarçam nossa real condição humana de escravidão.
Austeridade e isolamento
Schopenhauer herdou do pai uma pequena fortuna que administrou com zelo e permitiu que ele vivesse uma vida austera (ainda que com alguns luxos) sem precisar envolver-se no jogo de vaidades da vida acadêmica (apesar dele mesmo ser vaidoso). Condenava ferozmente os filósofos que buscavam poder e influência. Acusava Hegel de ser um impostor que deturpou a filosofia de Kant. Quem buscava prestígio através da filosofia não podia filosofar claramente. Mas Schopenhauer passou despercebido pelo fervilhante mundo filosófico da época.
No entanto, esse isolamento permitiu que sua filosofia fosse rica em experiências interiores. Schopenhauer foi um observador atento de seus próprios pensamentos. Sua obra é um convite antipático e provocador à introspecção e ao silêncio (odiava o barulho). Essa observação das forças interiores permitiu que sua reflexão brilhasse para além do burburinho entusiasmado de seu tempo. Seu olhar contemplativo percebeu a poderosa energia da vontade oculta da natureza. Schopenhauer nos convida a observar o mundo e pensar por conta própria.
“Há quase só idiotas no mundo”
Seguia uma rotina disciplinada, era poliglota e lia as obras filosóficas em sua língua original. Era dono de um temperamento forte e tinha consciência de sua genialidade. Constrangia senhoras e jovens que insistiam em conversar com ele no clube English Holf, onde costumava almoçar. Era o esteriótipo do velho antipático. Sua percepção de si mesmo confirmou-se quando finalmente, na velhice, sua obra foi descoberta pelo mundo filosófico, tornando-o famoso em toda a Europa. Nietzsche retomou o conceito de vontade de Schopenhauer e criou seu próprio conceito de vontade de potência. Ficou tão impressionado que escreveu a obra “Schopenhauer como Educador”. Tolstói foi enfático ao falar de Schopenhauer: “Estou convencido de que Schopenhauer é o homem mais genial de todos. (…) Ao lê-lo não posso compreender como o seu nome pôde permanecer desconhecido. A única explicação possível é a que ele mesmo repete tantas vezes, que há quase só idiotas no mundo.”
Safranski nos apresenta a vida do filósofo desde a infância. Sua conturbada relação com a mãe, a influência do pai, a marcante viagem em família, o estilo de vida que lhe permitiu assistir o jogo de marionetes da vida. Retrata com riqueza de detalhes o momento histórico em que viveu Schopenhauer e as experiências que delinearam seu pensamento.
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Autor: Alfredo Carneiro
Editor do netmundi.org
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