Neoplatonismo: introdução e principais conceitos
O neoplatonismo tornou-se filosofia predominante nos últimos séculos da Antiguidade. Representou a convergência de várias doutrinas filosóficas gregas, com ênfase nos aspectos espirituais do pensamento de Platão. Foi considerada também uma seita mística pagã que cresceu junto ao cristianismo em seus primeiros séculos, influenciando filósofos cristãos da patrística como Agostinho de Hipona e Gregório de Nissa. As literaturas místicas islâmica, judaica e gnóstica também foram influenciadas pelo neoplatonismo, bem como todas as religiões abraâmicas incorporaram elementos neoplatônicos durante a Era Medieval.
O período histórico do neoplatonismo vai desde a criação da Escola de Alexandria no Egito (século III) até o fechamento da Academia de Atenas em 529 (século VI) pelo Imperador Justiniano, que pretendia unificar o Império Romano estabelecendo o cristianismo como crença hegemônica, encerrando assim qualquer atividade filosófica ou religiosa considerada pagã.
O termo “neoplatonismo” é uma classificação acadêmica moderna. Foi adotada somente a partir do século XIX para se referir à retomada do pensamento de Platão durante os períodos helenístico (conquistas de Alexandre, O Grande) e romano (ascensão do Império Romano). Seus adeptos se consideravam apenas estudiosos do filósofo de Atenas, não fundadores de nova filosofia, todavia, algumas ideias do neoplatonismo são desenvolvimentos do pensamento de Platão, por isso a adoção do termo.
O filósofo Amônio Sacas (175-242), criador da Escola de Alexandria, é considerado o fundador do neoplatonismo, porém, será o filósofo romano Plotino (204-270), discípulo de Amônio, o autor da obra clássica do neoplatonismo, as Enéadas, coleção de 54 tratados publicados após a morte de Plotino pelo seu discípulo Porfírio em 205 d.C. É dividida em seis capítulos, sendo cada capítulo dividido em nove partes. Por isso o nome “Enéadas”: ennéa significa nove em grego.
É importante enfatizar que essa obra foi escrita em grego, fato que determinou a maneira fragmentada como o neoplatonismo influenciou tardiamente os pensadores de língua latina da Era Medieval. Muitos conheciam as Enéadas através dos leitores que dominavam o grego, não tanto pela leitura das obras. A primeira tradução realizada para o latim por Vitorino no século IV foi perdida; somente no século XV com a tradução de Marsílio Ficino as Enéadas se tornaram acessíveis.
Por isso o neoplatonismo é normalmente identificado com a filosofia de Plotino, que não pretendia criar um sistema original, mas apenas desenvolver o pensamento de Platão (considerado por Plotino o maior de todos os filósofos). Foi também influenciado pelo estoicismo, pelo aristotelismo e pelas tradições religiosas egípcias e gregas, podendo ser apontado como herdeiro do caldeirão cultural que compunha o final da Era Antiga. Por essa razão, Plotino é chamado de “a glória da filosofia antiga”.
Ainda que Plotino não seja fundador do neoplatonismo, certamente é seu grande sistematizador e um dos expoentes notáveis da filosofia grega no final da Era Antiga. Estabeleceu sua escola filosófica em Roma e teve vários alunos do senado romano, sendo o próprio imperador Galiano um de seus apoiadores.
Neoplatonismo e as três hipóstases: Uno, Nous e Alma
O neoplatonismo desenvolveu em alto grau os aspectos místicos da filosofia de Platão, convertendo o conceito platônico de Sumo Bem em divindade com a qual seria possível a união através de práticas ascéticas. Essa divindade é chamada de Uno ou Um, de onde emanam todos os seres; não possui qualquer multiplicidade ou dualidade (como bem e mal); é origem única de toda a realidade visível e invisível; é o Primeiro Princípio.
De maneira análoga à irradiação da luz emitida pelo Sol, todos os seres procedem do Uno como irradiação dele. No neoplatonismo, o Uno é chamado de primeira hipóstase. Possui potência infinita, ou seja, pode emanar (ou criar) infinitamente sem perder nada de si mesmo.
Trata-se, portanto, de uma filosofia monista: um único princípio que engloba todos os seres. Vem daí uma das influências do neoplatonismo sobre os filósofos cristãos e demais pensadores das religiões monoteístas, que viram nessa perspectiva a crença na existência de um único Deus. Apesar disso, o neoplatonismo possui traços politeístas: Plotino costuma citar deuses que estariam nos mundos superiores em estado de completa bem-aventurança ou suprema felicidade graças à proximidade do Uno.
Do Uno, por sua vez, irradia o Nous: essência que é puro pensamento ou intelecto; repositório dos modelos perfeitos (ou arquétipos) de todas as coisas que existem. Há semelhança com o Mundo das Ideias Perfeitas de Platão, que, assim como o Nous, é acessível ao ser humano através da razão e da contemplação filosófica.
O Nous é a segunda hipóstase; também pode ser entendido como Logos (razão universal citada pelos primeiros filósofos). Usando uma comparação de Plotino, assim como a luz da Lua existe apenas devido ao reflexo da luz do Sol, o Nous existe apenas devido à emanação do Uno.
Prosseguindo em um fluxo descendente de criação, o Nous dá origem à terceira e última hipóstase: a Alma. A Alma divide-se ainda em dois níveis: superior e inferior. A Alma superior ou universal permanece voltada para o Nous em sua atividade contemplativa; não se associa à matéria. A Alma Inferior ou Alma do Mundo (anima mundi, outro conceito de inspiração platônica) gera toda a matéria — o cosmos e sua multiplicidade — gerando também a alma individual de todas as formas de vida.
O termo anima, do latim, tem vários sentidos interligados. Anima significa tanto alma quanto o ser animado pela alma, o animal. É também origem do termo popular utilizado para se referir a alguém que está feliz: “está animado”. Anima mundi, assim, assume caráter filosófico e poético, podendo ser traduzida literalmente como “alma do mundo” ou “animação do mundo”.
A matéria representa o esgotamento do divino fluxo descendente originado no Uno; não traz em si qualquer poder ou perfeição. Para Plotino, a matéria representa o mal, porém, apenas devido ao distanciamento do Uno, não como “essência maligna”. O mal é privação na mesma medida em que a escuridão é ausência (privação) de luz. O Uno confere beleza e inteligibilidade aos seres; o distanciamento dele faz perder essas características.
O entendimento do mal (matéria) como distanciamento do Uno é base para compreensão do surgimento da multiplicidade da natureza (considerada uma “queda das almas”) e do posterior retorno de todas as almas individuais ao Uno. A Alma do Mundo (anima mundi), é o desdobramento da Alma Superior que tem por objetivo resgatar a matéria. Ao se voltar de forma contemplativa para a Alma do Mundo, o homem inicia seu retorno ao Uno.
Retorno ao Uno e felicidade humana
Tanto o Nous quanto a Alma tem como característica contemplar sua origem anterior. Assim, o Nous contempla o Uno e a Alma contempla o Nous. A Alma Inferior (anima mundi), da qual todos os seres vivos compartilham, tem o impulso de contemplar a Alma Superior. Plotino afirma que o homem, cuja essência é espiritual, ao se dedicar à contemplação filosófica e ao despojamento, inicia seu caminho de volta ao Uno.
A Alma Inferior se divide ainda em aspectos racionais, sensitivos e vegetativos, sendo mais completa no homem. Os demais seres se classificam de acordo com aspectos sensitivos e vegetativos; animais como o cão e o gato não teriam racionalidade (apenas aspectos sensitivos), bem como as plantas possuem apenas aspectos vegetativos.
Sendo o neoplatonismo herdeiro da religiosidade órfica grega e das tradições egípcias, existe a crença na transmigração da alma. Desse modo, quanto mais o homem desenvolve as virtudes do pensamento, mais se aproxima da Alma Superior, do Nous e do Uno (a trindade neoplatônica) se distanciando da matéria em sucessivas existências.
Todavia, o homem também pode se unir ao Uno em breves momentos através do despojamento e do êxtase mesmo em sua existência humana. Isso ocorre, como foi sugerido, através da contemplação filosófica, da vida simples e discreta (sendo o próprio Plotino exemplo disso) e outras práticas ascéticas, como o esvaziamento da mente descrito nas Enéadas:
“(…) com maior razão, a alma deve despojar-se de toda forma a fim de não ter nada armazenado dentro de si que ponha obstáculo à recepção da plenitude e da iluminação da Natureza Primeira (…) Esta é a vida dos deuses e a dos homens divinos e bem-aventurados: liberar-se das coisas daqui, livrar-se dos deleites e fugir só ao Solitário.”
Seguindo a influência platônica, Plotino desconfia da matéria, sendo ela apenas sombra imperfeita dos mundos superiores perfeitos. Por isso o homem deve superar a ilusão material e se dedicar ao aspecto superior da alma, se voltando para a fagulha do Uno que, segundo o neoplatonismo, reside “no centro da alma”.
Assim, existe no “centro da alma” o desejo inato de retorno à Natureza Primeira ou Uno, pois permanece nela a recordação de seu estado anterior e o desejo de libertar-se de sua prisão material. Esse retorno ao Uno é felicidade por excelência. Essa (re)aproximação do Primeiro Princípio confere ao homem percepção da verdadeira beleza e perfeição, lhe conferindo também inteligibilidade e discernimento. Sobre isso, Plotino aconselha:
“Volta-te para dentro de ti e olha: se ainda não vês beleza em ti, fazes como o escultor de uma estátua que deve tornar-se bela: ora ele tira um fragmento, ora aplica o cinzel, ora limpa o pó, a fim de extrair um belo vulto do mármore. Como ele, tira o supérfluo, endireita o que está torto, clareia o que é fosco, até torná-lo brilhante, e não cesses de esculpir a tua própria estátua, até que a centelha divina da virtude se manifeste e vejas a temperança sentar-se num trono sagrado.“
Por isso, o imperativo da escola de Plotino era:
“Despoja-te de tudo”
Esse imperativo, todavia, não deve ser entendido de forma radical como, por exemplo, “livrar-se de todos os bens materiais”, mas sim de forma filosófica, retirando da alma aquilo que foi acrescentado no seu processo de descida na matéria (como prazeres desmedidos, supérfluos e ilusões) e fazendo-a perceber sua relação com a divindade.
Porém, quanto mais o homem se entrega aos aspectos sensitivos e vegetativos, mais sua alma perderá racionalidade, tornando-se, em outras existências, animal ou planta, decaindo e regredindo na matéria. Mas, ao regredir na matéria, o ser percebe o mal como distanciamento do Uno e tende a se voltar aos seus aspectos superiores, desejando o retorno. Nas belas palavras de Plotino, esse é “o retorno do solitário ao Solitário”.
Comparações com a filosofia de Platão e Aristóteles
O que foi dito até aqui sobre o neoplatonismo é semelhante à Alegoria da Caverna de Platão, a história do homem que se liberta de suas correntes e percebe que as sombras na parede — que ele julgava única realidade — são apenas projeções grotescas de objetos que estão atrás dele (uma realidade superior ou Mundo das Ideias Perfeitas); ao sair da caverna, é ofuscado pela luz do Sol (o Sumo Bem); quando consegue adaptar seus olhos à luz, percebe a verdadeira realidade com todas suas cores.
Na metafísica de Aristóteles, o Primeiro Princípio é chamado Motor Imóvel, pois move todas as coisas, mas sendo o primeiro, não é movido por nada anterior a ele. Em uma analogia feita por Aristóteles, o Motor Imóvel é como o ser amado que move o amante sem nada fazer. Da mesma forma, o Uno neoplatônico é a razão de ser de todas as coisas.
Por isso, como foi dito, os filósofos neoplatônicos se consideravam um prosseguimento da filosofia de Platão (bem como de outros pensadores como Aristóteles), e não iniciadores de nova filosofia. Para Plotino, esse era um caminho natural, uma vez que a filosofia se movimenta e evolui através do legado dos pensadores anteriores.
Desde a antiguidade o pensamento de Platão sofreu inúmeras interpretações da tradição filosófica. Sua filosofia é impregnada de temas enigmáticos, entendidos como pura abstração ou indicação de mundos espirituais. O neoplatonismo é um dos grandes exemplos das interpretações da filosofia de Platão; teve influência marcante na filosofia e religiosidade do Ocidente e atualmente é muito discutido na psicologia moderna devido ao conceito de arquétipo.
Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.
Referência Bibliográfica
- DUMONT, J. P. Elementos de história da filosofia antiga. Brasília: EdUnB, 2005.
- REALE, G. História da filosofia antiga. São Paulo: Loyola, 1994b. v. 3: Os sistemas da era helenística
- FRAILE, G. História de la filosofia: Grécia y Roma. 7. ed. reimp. Madrid: BAC, 1997.
- HADOT, P. O que é a Filosofia antiga? São Paulo: Lisboa, 1999. 423 p.