Foucault: principais ideias e obras
A forma como Michel Foucault (1926-1984) analisou e interpretou a história foi de fato original e criativa, efetuando um resgate detalhado de documentos que poucos deram importância, realizando assim uma “arqueologia” em regiões abandonadas do passado. Ou, como diria o próprio Foucault, uma “exumação” de registros esquecidos. Ao realizar uma pesquisa documental sobre as prisões, os hospícios, a história da clínica e a linguagem de cada época, alguns fatos impressionantes saltaram aos olhos do filósofo. A história contada nos livros é cheia de furos e detalhes inexplorados. A verdade das relações de poder estaria nesses detalhes enterrados, mas agora devidamente exumados por Foucault.
Influência da genealogia de Nietzsche em Foucault
Foucault foi influenciado pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche, que lhe mostrou os “discursos válidos ou sagrados” que escondiam esquemas de poder. Em sua obra Genealogia da Moral, Nietzsche descortinou a “tragédia” da filosofia ocidental, que teria sido infectada — graças a Platão — pela ideia de um mundo espiritual do qual somos mera sombra.
Essa ideia, segundo Nietzsche, foi reformatada durante a história da filosofia medieval e do cristianismo como um discurso válido, contudo, estaria sempre a serviço da consolidação de poder da Igreja e do Estado. Nietzsche chama a atenção, por exemplo, para a transformação de significados das palavras “bom” e “mau”.
Na antiguidade, o “bom” era o habilidoso. Com a “ascensão dos fracos” (graças à valorização de mundos espirituais e do cristianismo) o “bom” passou a ser o piedoso, o temente a Deus — mesmo que incompetente. Na mesma linha de pensamento, o “ruim”, antigamente, era o incompetente. Mas agora “ruim” é o egoísta, o perverso, aquele que não teme a Deus — mesmo que habilidoso.
Para Nietzsche, essas “verdades sagradas” nunca passaram de sistemas de poder e controle. Nietzsche acreditava, por exemplo, que o cristianismo é a história dos fracos e invejosos enfraquecendo os fortes e orgulhosos (com discursos sagrados sobre Deus, bondade, eternidade, pecado e punição). Seria uma “vingança dos incapazes”. Dirá Nietzsche: “Pecado é colocar um jovem, belo e saudável, de joelhos arrependido numa Igreja”.
Essa ideia de intenções ocultas nos discursos foi absorvida com voracidade por Foucault. Todavia, ainda que tenha inicialmente se inspirado em Nietzsche, Foucault irá diferir dele em sua visão de poder, como veremos. O filósofo francês irá acrescentar um ingrediente: a produção de saber. E chamará seu método de “arqueologia”.
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Episteme e discurso
Com sua ideia de arqueologia, Foucault iniciou a “exumação” exaustiva de registros originais e “palavras de poder” de cada época, que ele chamou de episteme — pressupostos, preconceitos, tendências, palavras e significados que delimitavam a mentalidade e a pesquisa de um período histórico.
Foucault criou o termo episteme baseado na epistemologia, um dos mais notórios ramos da filosofia que pesquisa os pressupostos do conhecimento. Contudo, o termo episteme na filosofia de Foucault se refere aos saberes e percepções de um período, como foi dito acima.
Uma determinada episteme, por sua vez, gera um determinado discurso, que é o conjunto de práticas sociais produzidas pela episteme de uma época. Foucault detalhou seu método na obra As Palavras e as coisas.
Até agora, isso parece muito com a genealogia de Nietzsche. Entretanto, Foucault irá além. Para ele, cada período possui “discursos válidos” que norteiam não apenas as relações sociais mas também a produção de conhecimento, que é algo fundamental para o poder.
A história da loucura e o nascimento da clínica
Na sua obra A História da Loucura, o filósofo francês demonstra que na Idade Média os loucos eram deixados livres, e alguns até considerados sagrados ou sábios.
Com a evolução do humanismo, o louco chegou a ser romantizado e a loucura seria um reflexo da insanidade social. Os loucos de Shakespeare falavam verdades de forma ambígua e Dom Quixote era o reflexo da loucura da humanidade. Percebe-se aqui como um discurso (gerado por uma episteme) influenciou a produção literária.
Com a consolidação da modernidade, a ciência torna-se “verdade absoluta” (ou a nova versão da verdade), enquanto a loucura era desrazão, portanto, algo a ser confinado, controlado e estudado pela razão. Baseado nesse novo discurso surgiam os hospícios, e o louco (agora confinado) passou a ser objeto de estudo da ciência.
Ainda que a ciência seja uma pesquisa criteriosa baseada em dados empíricos demonstráveis, as práticas sociais que surgem dela não são necessariamente racionais, principalmente nas relações entre controle social e produção de saber.
Posteriormente, nessa relação de poder/saber, a evolução da farmacologia permitiu que o louco ficasse livre, porém, devidamente controlado por medicamentos. O controle social começa a se sofisticar, e tem uma função importante nas ideias de Foucault, pois seria um dos objetivos do poder e da produção de conhecimento.
Entretanto, de acordo com cada época — e com o discurso válido vigente — poderia ser considerado louco qualquer um que tivesse um comportamento considerado inadequado. Foucault realizou um imenso trabalho sistemático sobre esse tema, publicado na obra O Nascimento da Clínica: uma arqueologia da percepção médica.
Assim, homossexuais, mendigos, esquisitos, desocupados ou qualquer um com atitude indesejada seria confinado, subjugado e estudado (para que fosse “normalizado”), uma vez que a “normalidade” seria também algo arbitrário e socialmente aceito pelo discurso vigente. O surgimento dos hospícios também coincide com uma aceleração no desenvolvimento da medicina.
O filósofo Diógenes, que na Grécia Antiga vivia em um barril, provavelmente teria virado “objeto de estudo”. Todos esses indivíduos indesejados não agiriam de forma “racional”. Mas o próprio sentido da palavra “razão” se modifica de forma duvidosa ao longo da história, sempre a serviço do poder.
Então, como já foi dito, não falamos apenas de poder, mas de poder que gera conhecimento que gera mais poder e controle.
Foucault percebe então que o surgimento de novos sistemas de conhecimento acompanham alterações no poder. Essa é a famosa relação de poder/saber desse filósofo francês. É importante repetir que o poder, para Foucault, reside nas relações sociais, que por sua vez estão embasadas na verdade (episteme) e no discurso de cada época — que não é necessariamente racional.
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A história das prisões
No seu livro Vigiar e punir: nascimento da prisão, o filósofo detalha um terrível esquartejamento público ocorrido em 1757. Os detalhes impressionantes da tortura era algo inusitado para uma obra filosófica. Quando, a partir do século XVIII, a execução pública foi substituída pelo encarceramento, mais uma vez ocorrem alterações significativas nas práticas sociais.
Em vez de simplesmente destruir o criminoso, a sociedade assume o controle sobre ele — vigiando e punindo. Os condenados, que antes eram eliminados, passaram a ser confinados e “reformados”. Nasciam as prisões. Foucault irá demonstrar (com vários registros históricos) que várias mudanças culturais também ocorreram nesse período.
Na Revolução Industrial, as fábricas passam a assumir características prisionais. No sistema judiciário nasce a preocupação de controlar e organizar não apenas o detento, mas também a vida pública com mais rigor e, finalmente, as escolas passaram a se parecer com os sistemas prisionais e com as fábricas.
Com o surgimento das prisões, simultaneamente surge a sociedade disciplinadora. E o Estado se torna prioritariamente vigilante e punitivo. Não se trata de minimizar as punições contra criminosos, muito menos desconsiderar os problemas mentais — no caso da História da Loucura — mas de apontar as estruturas de poder que surgem juntamente com as prisões e os hospícios.
O Estado punitivo não apenas aprisiona, controla e reforma o detento, mas também controla e regula os indivíduos livres. Assim, o poder se une à produção de conhecimento e posteriormente ao capitalismo e à tecnologia de forma visceral.
O surgimento das prisões também coincide com o surgimento da criminologia, da psicologia e da sociologia. Assim como nos hospícios, os detentos agora poderiam ser estudados. O desenvolvimento de ciências como a economia, a geografia e a história passam a ter caráter científico, aumentando o poder social sobre os detentos — e agora também sobre quem poderia ser preso e a sociedade de forma geral.
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O Panóptico de Foucault
A história da loucura levaria à poderosa indústria farmacêutica, que muito além de controlar o louco, domina nossas vidas. Tudo isso também estaria intimamente relacionado com a verdade oculta na história das prisões, que reflete a ascensão de novos “discursos válidos” e sistemas sofisticados de controle social.
Foucault, já no seu tempo, percebeu que a vigilância — com a evolução tecnológica — assumiu um caráter impessoal. Os indivíduos não se sentem mais vigiados por pessoas, mas por tecnologias. Isso transmite mais ainda a agoniante sensação de vigilância dia e noite.
Como símbolo desse complexo sistema, Foucault utilizou o Panóptico, uma prisão projetada pelo filósofo utilitarista Jeremy Bentham, que permite que todos os detentos sejam vigiados a partir de um único ponto sem saber se estão sendo observados. Isso faz, com o tempo, com que os detentos passem a se comportar de acordo com desejado pela vigilância.
Nos moldes do Panóptico, o filósofo aponta que vários dispositivos de vigilância e controle social se disseminaram nas sociedades, surtindo o mesmo efeito disciplinar sobre os “cidadãos livres” — que também nunca sabem se estão sendo observados e passam a se comportar de acordo com o discurso de poder vigente.
Foucault não viveu para presenciar o avanço impressionante da internet, das redes sociais, celulares, câmeras de trânsito e milhares de outros dispositivos de controle que atualmente dominam nossas vidas. Porém, o mundo de vigilância e controle — aliado à alta tecnologia — apenas parece confirmar suas teses sobre a produção de conhecimento e controle social.
A filosofia de Foucault é compatível com as ideias dos atuais filósofos da informação, que agora estudam os efeitos das tecnologias digitais nas sociedades, ramo denominado cibercultura.
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Autor:Alfredo Carneiro
Editor do netmundi.org
Referência Bibliográfica
- FOUCAULT. Vigiar e Punir. Portugal: Edições 70, 2013.
- FOUCAULT. O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
- FOUCAULT. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
- FOUCAULT. Segurança, Territorio, População. São Paulo: Martins Fontes
- NIETZSCHE. Genealogia da Moral, São Paulo: Companhia das Letras, 2005