John Locke – Sobre o entendimento humano
John Locke nasceu em 1632, em Wrington, Inglaterra, e morreu em 1704, em High Laver, também na Inglaterra. Estudou em Oxford, onde teve contato pela primeira vez com a filosofia cartesiana, que lhe despertou grande interesse como alternativa mais adequada ao escolasticismo que ainda predominava no ensino filosófico da época. Estudou medicina, dedicando-se à experimentação e travando conhecimento com alguns dos cientistas mais brilhantes da época.
Ainda em Oxford, tornou-se médico particular de Anthony Ashley Cooper, futuro conde de Shaftesbury, assumindo finalmente o papel de assessor e secretário particular, à medida que Shaftesbury ascendia politicamente. Participou intensamente do movimento político que resultou na chamada Revolução Gloriosa de 1689, que marcou o fim do absolutismo inglês.
Em função disso, precisou exilar-se duas vezes no continente; uma vez na França, onde manteve intensos contatos com a comunidade cartesiana, e outra na Holanda, retornando à Inglaterra com a ascensão de Guilherme de Orange ao trono inglês.
Locke escreveu duas obras de grande impacto na evolução posterior da filosofia: o Ensaio sobre o Entendimento Humano, em que desenvolve sua epistemologia empirista, e os Dois Tratados sobre o Governo Civil, em que expõe suas idéias políticas, ambas publicadas em 1690. Este post trata das ideias de Locke sobre o entendimento humano, portanto, da primeira obra, e não de suas ideias políticas.
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Ensaio sobre o Entendimento Humano
O Ensaio sobre o Entendimento Humano é uma obra vasta e ambiciosa. Sua intenção é semelhante a que animou a filosofia cartesiana: examinar a possibilidade de nosso conhecimento, seus limites e seu fundamento.
Na verdade, mais do que os seguidores racionalistas de Descartes, é Locke quem vai dar prosseguimento à intuição cartesiana de que o novo papel da filosofia, em face do desenvolvimento da ciência, é o de desenvolver uma teoria do conhecimento — também conhecida na filosofia com epistemologia.
Esse interesse especial pela epistemologia se complementa, em Locke, por um desinteresse pela metafísica, no sentido tradicional — sua filosofia vai, na verdade, iniciar um processo de crítica da metafísica tradicional, ainda muito presente na obra dos grandes racionalistas, que vai atravessar todo o século XVIII.
Locke, no entanto, embora tenha uma dívida clara com a maneira de entender a filosofia iniciada por Descartes, não associa necessariamente ao conhecimento uma ideia forte de certeza, como fazia o filósofo francês. Não acredita que a filosofia ou a ciência em geral deva atingir um grau de certeza comparável ao da matemática.
Consistente com isso, na sua investigação do conhecimento, Locke não vai adotar um método dedutivo, como fez Descartes, mas um procedimento que ele próprio vai caracterizar como um “simples método histórico”, considerando “as faculdades da inteligência do homem e como elas são empregadas sobre as coisas”, procurando “dar um relato dos meios pelos quais nossos entendimentos alcançam as noções das coisas que possuímos”.
Nesse “método histórico”, a investigação da origem das ideias é o primeiro passo. Disso se ocupam as duas primeiras partes do Ensaio. Os racionalistas assumem que possuímos determinadas noções ou ideias inatas – ideias como as de Deus, substância, causa, etc. –, cujo conteúdo, por assim dizer, está inscrito em nossa mente independentemente de qualquer experiência desde o nascimento.
De fato, mais do que isso, o que essas ideias supostamente representam está para além de nossa experiência comum. Os racionalistas acreditam que não temos uma experiência sensível de Deus ou da substância – mas nossa razão nos força a reconhecer e afirmar essas ideias. Esse é o pressuposto que o empirismo vai começar negando: nossas ideias ganham seu conteúdo da experiência; do que não temos experiência, não temos ideia.
Locke e a noção de ideia
A noção fundamental da epistemologia de Locke é a noção de ideia. Note que esse termo começou a ser usado no seu sentido moderno justamente por Descartes e seus seguidores imediatos.
Como dissemos antes, Locke foi influenciado pela filosofia cartesiana (embora discordasse de vários pontos básicos da atitude racionalista), e conviveu, durante algum tempo, com os círculos cartesianos na França.
Embora tenha rejeitado o racionalismo cartesiano, Locke aceita alguns pontos fundamentais da nova compreensão de filosofia promovida por Descartes, entre eles, justamente, a noção de ideia.
Locke começa fazendo uma afirmação que lembra, em alguma medida, o cogito cartesiano, sem se preocupar, no entanto, em associá-la a um argumento ou em atribuir-lhe algum status especial: “todo homem tem consciência de que pensa e que, quando está pensando, sua mente se ocupa de ideias.”
“Por conseguinte, é inegável que a mente humana tem várias ideias, expressas, entre outras, pelos termos brancura, dureza, doçura, pensamento, movimento, homem, elefante, exército, embriaguez. Disso decorre a primeira questão a ser investigada: como elas são apreendidas?” – Locke
É evidente, diz ele, que possuímos ideias (essa evidência corresponde à evidência da introspecção). Isso é inegável. A questão é saber de onde elas vêm. A essa questão, Locke responde simplesmente: vêm da experiência. Sendo Locke um dos grandes representantes do empirismo, é natural que entenda o ser humano com uma Tábula Rasa.
Nossa mente, diz ele, é como uma folha de papel em branco, no qual a experiência escreve suas impressões, que são nossas ideias (em outros lugares Locke compara a mente humana a um quarto vazio, que a experiência irá “mobiliar” com ideias).
Essa experiência pode ser tanto a sensação, que nos dá a conhecer os objetos sensíveis, quanto a reflexão, que nos dá a conhecer as operações de nossa própria mente. Sendo assim, é impossível que haja ideias independentes da experiência.
Seguindo o uso da época, Locke vai se referir a essas ideias, pretensamente independentes da experiência, como ideias inatas. A primeira parte de seu Ensaio vai, justamente, consistir em uma crítica a essas pretensas ideias ou princípios inatos.
Essa crítica de Locke despertou o interesse de Leibniz, que teve conhecimento de seu Ensaio e escreveu uma longa refutação, que intitulou: Novos ensaios sobre o entendimento humano.
A segunda parte do Ensaio vai ser uma detalhada aplicação de seu “método histórico” ou genético, isto é, um exame de nossas ideias a partir do postulado fundamental de que todas elas têm de ter sua origem na experiência.
Ideias simples e ideias complexas
Note que esse postulado sugere, efetivamente, uma espécie de “método”: de cada ideia que possuímos devemos ser capazes de reconstruir sua origem até os dados imediatos da experiência.
Se não formos capazes de fazer isso, então essa ideia é vazia e deveria, simplesmente, ser descartada (o termo com o que a designamos, por sua vez, é só uma palavra sem sentido). O exame que Locke faz das ideias e de sua origem organiza-se em torno de uma classificação proposta por ele.
Distingue, inicialmente, ideias simples de complexas. As ideias simples são concepções ou aparências uniformes na mente. A ideia (a sensação) que temos de vermelho quando vemos uma maçã, por exemplo, é uma ideia simples, assim como o gosto que sentimos quando mordemos a maçã.
A ideia de “maçã”, por sua vez, é uma ideia complexa, construída em nossa mente pela reunião de ideias simples como vermelho, um certo gosto, uma certa forma. As ideias simples, por sua vez, podem nos vir por um ou mais sentidos ou pela reflexão. As ideias complexas são feitas ou produzidas pela mente, combinando ideias simples.
As ideias ainda podem ser classificadas como claras ou obscuras, distintas ou confusas, reais ou fantásticas, adequadas ou inadequadas, verdadeiras ou falsas. Estão são classificações das ideias. Vamos agora nos deter nas qualidades primárias (que pertencem ao objeto) e secundárias (que pertencem ao sujeito).
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Qualidades primárias e secundárias das ideias
Feito este esclarecimento acerca das ideias simples e complexas, voltemos à noção de “ideia”. “Ideia”, diz Locke, é “o objeto do entendimento quando um homem pensa”. Ou ainda: “tudo o que a mente percebe, pensamento ou entendimento, a isso eu chamo ideia”.
Perceber alguma coisa é, assim, estar consciente de uma ideia. Comumente, dizemos que o que vemos, tocamos ou sentimos é alguma coisa. Locke está dizendo algo diferente: todas essas coisas são ideias.
Locke, contudo, faz uma distinção entre qualidades primárias e qualidades secundárias das ideias. Em suma, existem dois tipos de propriedades: aquelas que pertencem realmente ao objeto e aquelas que dependem do sujeito.
No primeiro grupo (ideias primárias), estão, por exemplo, as propriedades espaciais: tamanho, forma, lugar, etc. No segundo (ideias secundárias), as qualidades sensíveis: cor, cheiro, gosto, etc. As primeiras estão “no objeto”, enquanto as segundas estão, por assim dizer, “no sujeito”.
A versão de Locke começa com a diferença entre a ideia e aquilo que ela representa, que Locke vai, então, chamar de qualidade. O poder de produzir uma ideia em nossa mente é qualidade do sujeito.
Uma bola de neve tem o poder de produzir em nós as ideias de branco, frio e redondo; aos poderes de produzir em nós essas ideias tais como elas estão na bola de neve, chama de qualidades. E como elas são sensações ou percepções em nossos entendimentos, as chama de ideias.
Da forma como Locke põe as coisas, ideias e qualidades parecem não ser tão diferentes assim. Não é sua intenção, mas parece que quase podemos usar “ideias” ou “qualidades” como se fossem a mesma coisa – o que sugere uma relativização entre elas.
Mas as qualidades não são todas do mesmo tipo. Há algumas, diz Locke, que não podem ser separadas dos corpos. São qualidades que os corpos continuam possuindo apesar de toda mudança que sofrem.
Locke dá um exemplo: peguemos um grão de trigo e o dividamos; da mesma forma como o grão original, os pedaços possuem volume, extensão e forma; se dividirmos novamente esses fragmentos, continuarão possuindo essas qualidades, embora, naturalmente, as dimensões tenham mudado
A essas qualidades (solidez, extensão, figura, mobilidade e número), Locke vai chamar de qualidades primárias ou originais. Lembre-se de que, para Locke, qualidades são poderes que o objeto tem de produzir em nós determinadas ideias.
As qualidades primárias produzem em nós ideias que são semelhanças ou cópias daquilo que os objetos são em si mesmos. Nossa ideia da forma esférica de uma bola, por exemplo, reproduz a ideia de que a bola é realmente redonda em si mesma.
Além disso, os corpos têm determinados poderes de provocar em nós determinadas sensações. A esses “poderes de produzir diversas sensações em nós em virtude das qualidades primárias”, Locke vai chamar de qualidades secundárias.
Nossas idéias de qualidades secundárias não são cópias ou semelhanças de algo que está no objeto, mas existem em função dessa interação entre as qualidades primárias e nossos sentidos.
Assim, nossa ideia da cor da bola não reproduz algo que pertença realmente à bola, mas é resultado da interação entre nossos sentidos e as qualidades primárias da bola. Como você pode ver, essa diferença entre qualidades primárias e secundárias remete para considerações sobre o que constitui realmente a realidade.
Como é possível conhecer alguma coisa para além de suas qualidades? Esse tipo de conhecimento, afinal, parece ser necessário para alegarmos algum conhecimento da “verdadeira realidade”. Mas será que temos tal conhecimento? Locke não dá respostas satisfatórias a essas questões.
Ele próprio se contenta em dizer que, embora não tenhamos uma ideia clara do que seja “verdadeira realidade” (ou substância), temos que acertar está relacionado com a ideia de qualidade ou propriedade.
Reduzida a um “não sei o quê”, a ideia de substância, que tem tanta importância para a metafísica racionalista, parece perder a importância.
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Filósofos racionalistas que deram grande importância ao conceito de substância
Locke e a linguagem
Uma vez tendo tratado da origem das ideias, caberia a Locke passar para a consideração do uso que a mente faz dessas ideias, construindo nosso conhecimento. Para isso, Locke considerou a linguagem o ponto fundamental da investigação da mente.
Ele diz: “há uma conexão tão estreita entre ideias e palavras, e nossas ideias abstratas e gerais têm uma relação tão constante entre si, que é impossível falar claramente e distintamente de nosso conhecimento, que todo ele consiste em proposições, sem considerar primeiro a natureza, uso e significação da linguagem.” Essa preocupação com a linguagem, aliás, é típica da tradição empirista.
Foram os empiristas os primeiros a chamar a atenção para a importância de uma consideração da linguagem como parte de um projeto epistemológico. Já Hobbes, filósofo britânico que, junto com Francis Bacon, foi um dos precursores do empirismo lockeano, reservou uma parte importante de sua investigação sobre o conhecimento para tratar da linguagem.
A linguagem, diz Locke, consiste fundamentalmente em palavras, e palavras são signos de ideias – primariamente, são signos das ideias em minha mente.
Ideias, vale lembrar, são, para Locke, os objetos imediatos do pensamento e são representações (ou signos, podemos dizer) das coisas (ao menos uma boa parte delas). Precisamos das palavras como signos das ideias, porque as ideias estão apenas na minha mente.
Palavras são públicas, enquanto ideias são privadas. O estudo da linguagem permite a Locke examinar com mais cuidado uma questão de suma importância: a questão das ideias gerais ou abstratas.
De fato, para um empirista, as ideias abstratas constituem um problema a ser explicado. Locke trata a abstração como uma das maneiras pelas quais formamos ideias complexas (comparando diversas ideias, retirando aquilo que têm de diferente e retendo o que têm em comum).
Esse processo está intimamente relacionado com a linguagem. Por abstração, para Locke, não podemos entender um procedimento que nos revele a essência real de uma coisa. A essência real de uma coisa já foi entendida, por alguns filósofos, como uma espécie de “forma” platônica, um modelo, de que cada coisa particular participa, em algum sentido.
Locke rejeita totalmente essa compreensão de essência real, por ser contrário à evidência empírica; essa teoria pressupõe tipos fixos, não permitindo dar conta de variações dentro de tipos. Como vemos aqui, os empiristas combatem questões metafísicas que buscam a “essência das coisas”.
Outros entendem a essência real como aquilo (que não pode ser conhecido) de que emanam, de algum modo, as qualidades sensíveis de uma coisa (ou seja, a substância). Ora, se não pode ser conhecido, não é isso a que chegamos por abstração. Portanto, a abstração não nos fornece acesso à essência real das coisas.
O que a abstração nos fornece, diz Locke, é a essência nominal. A essência nominal é a ideia complexa formada a partir da reunião dos traços e características cuja posse é necessária e suficiente para que algo seja classificado como um determinado tipo.
A busca por uma “essência” ou “verdade absoluta” seria fundamentalmente uma ideia errada, ou, no mínimo, a busca de algo que não temos acesso ou que não existe. É, portanto, uma perda de tempo.
Por exemplo, para que algo seja classificado como “ouro”, precisa ter determinadas características, que reunimos na essência nominal “ouro”. O termo geral “ouro” remete à ideia abstrata de ouro, que, por sua vez, é idêntica à essência da espécie ouro. Isso é tudo o que podemos estabelecer sobre a essência das coisas.
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A importância do pensamento de Locke
As ideias de Locke, com seu empirismo apoiado em grande medida no senso comum, sem grandes ambições metafísicas, tiveram um grande sucesso – sucesso ampliado e reforçado pela associação que logo foi feita entre a epistemologia lockeana e a física newtoniana.
Isaac Newton havia publicado seus “Princípios matemáticos da filosofia natural”, obra que coroou a revolução científica iniciada por Copérnico e continuada por homens como Kepler e Galileu, em 1687, três anos antes de Locke publicar seu “Ensaio”.
Os dois desenvolveram suas ideias independentemente, mas é inegável que ambas as obras compartilham uma série de pressupostos e premissas, frutos que são, de certa forma, do mesmo ambiente intelectual.
No Século XVIII, os nomes de Locke e Newton vão estar intimamente associados – Newton como o que desvendou os segredos do universo físico e Locke o que desvendou os segredos da mente humana, como dirão, mais tarde, os filósofos franceses que se reunirão em torno da grande empreitada da Enciclopédia, em meados do Século XVIII.
Referências Bibliográficas
- LOCKE, John. Carta acerca da tolerância e outras obras. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
- ___________. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999
- BURTT, Edwin A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: UnB, 1983.
- ROVIGHI, Sofia Vanni. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 2000.
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