Michel de Montaigne e a sabedoria dos animais
Um argumento bem antigo, mas até hoje muito difundido, é que os animais são destituídos de razão, sendo esta a principal diferença entre os humanos e os outros animais. Baseados nisso, nos arrogamos superiores aos bichos. Em um de seus mais famosos ensaios, o filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) declara sua desconfiança acerca da razão humana. Montaigne irá tentar derrubar esta tese sobre nossa superioridade, afirmando que em quase tudo os demais animais são superiores a nós. Não apenas na razão, mas também na sabedoria.
Contudo, Montaigne não é radical, pois também afirma que aqueles que desprezam a razão e a ciência “dão provas de estupidez”. Desconfiança sim, desprezo não. Filósofos são filósofos porque são sensatos. Montaigne valoriza a ciência e a razão, porém, ao contrário do pensamento vigente de sua época, ele não dá à razão poderes absolutos. Montaigne acredita que a razão não pode nos tornar sensatos e satisfeitos.
Assim, para criticar a razão, Montaigne fará uma análise do comportamento dos animais, e essa será sua grande arma. O ensaio Apologia de Raymond Sebond, é um longo texto onde Montaigne reúne alguns feitos fantásticos de vários animais e observações feitas pelo próprio filósofo. Foi escrito baseado no livro Teologia Natural ou Livro das Criaturas, de Raymond Sebond, e compõe sua obra Os Ensaios.
O objetivo principal deste post não é uma análise do ensaio de Montaigne, que é bastante longo e complexo, mas sim disponibilizar alguns exemplos do sábio comportamento dos animais. É um objetivo simplório diante da enorme ambição deste ensaio do filósofo francês, contudo, considero estas observações sobre os animais muito valiosas; verdadeiras pérolas de um tempo em que a natureza era mais vasta, poderosa e surpreendente. Diante destes exemplos, ficamos nos questionando se nossa presunção de superioridade não é apenas uma conclusão apressada e ingênua, então, vamos a eles. A partir daqui eu me calo de deixo falar Michel de Montaigne.
A natureza revestiu todas as criaturas de carapaças, cascas, pelos, lã, espinhos, couro, seda, segundo suas necessidades;armou-as de garras, dentes e chifres para o ataque e a defesa, ensinando-lhes a nadar, correr, voar, cantar, ao passo que o homem não pode, sem aprendizado, andar, falar, comer. Apenas sabe chorar.
Os habitantes da Trácia, quando têm de atravessar um rio congelado, servem-se de uma raposa que caminha na frente. Vê-se o animal aproximar-se do gelo, até tocá-lo para verificar se a água corre perto ou longe. Verificada a espessura do gelo, avança ou recua. Não somos levados a pensar que em seu cérebro se observa um processo racional semelhante ao nosso? Atribuir o ato da raposa apenas à acuidade de seu ouvido, sem reflexão, é algo que não podemos aceitar. Igual opinião devem merecer todas as invenções e astúcias a que recorrem os bichos para se verem livres de nossa perseguição.
Haverá organização social mais perfeita que a das abelhas? A divisão do trabalho e dos encargos é tão bem regulada entre elas, que não podemos imaginar sem supormos esses insetos dotados de inteligência. Por esses sinais e exemplos, julgaram alguns sábios que as abelhas possuíam uma parcela de espírito divino e tinham uma alma.
Se, em prol de nossa superioridade, quisermos argumentar com o fato de que podemos aprisionar os outros animais e empregá-los à vontade a nosso serviço, direi que o mesmo podemos fazer com outros homens. Em sua maioria, as pessoas livres entregam sua vida e seu ser a outrem em troca de insignificantes vantagens. Os animais são ainda mais generosos que nós, pois nunca se viu um leão escravo de outro leão, nem um cavalo de outro cavalo.
Os bois, empregados na irrigação dos jardins reais de Susa, faziam girar grandes rodas com baldes. Esses bois deveriam dar cem voltas cada um e conheciam tão bem esse número que, ao ser atingido, paravam imediatamente. Certos povos recém-descobertos não tem ideia dos números.
Achava-se Plutarco em um navio e viu um cão que se esforçava vigorosamente para beber o azeite de uma vasilha. Não podendo alcançar com a língua por ser o gargalo muito estreito, pôs-se a catar pedras e jogar na vasilha até que o azeite subiu a uma altura acessível. Haverá raciocínio mais sutil? Dizem que os corvos da Berberia agem assim quando o nível da água que querem beber está muito baixo.
O guarda de um elefante colocava pedras em sua comida para aumentar a medida da ração. O animal então se aproximou da marmita que o guarda comia e encheu-a de cinzas.
Vi outrora homens vindos do mar de longínquos países. Como não compreendíamos suas línguas e seus costumes, suas atitudes e vestimentas não se assemelhavam aos nossos, os consideramos selvagens e estúpidos. Condenamos tudo o que nos parece estranho e também o que não compreendemos. E por esse prisma julgamos os animais.
Os animais fazem muitas coisas que ultrapassam em muito aquilo que somos capazes, que não conseguimos imitar e que nossa imaginação não nos permite sequer conceber. Essas coisas que os animais podem fazer e que não conseguimos igualar são uma prova de que, em certos pontos, eles possuem meios mais desenvolvidos que os nossos.
De todos os meios de previsão do futuro empregados nos tempos antigos, os mais seguros eram os que se tiravam do voo dos pássaros. Nada temos tão admirável. A maneira de bater as asas, pela qual se tem a noção do futuro, devia provir de algo intimamente ligado à este tipo de previsão.
Os grous, as andorinhas e outros pássaros migratórios demonstram que podem adivinhar o tempo e exercem à vontade essa faculdade.
Para nos conservar em boa saúde, aconselham os médicos a vivermos como os animais e o seguinte ditado está na boca do povo: “resguarda os pés e a cabeça e quanto ao resto faze como os bichos”.
Se, para sermos justos, devemos dar a cada um o que lhe é devido, diremos que os animais servem, amam e defendem seus donos; perseguem e agridem os estranhos e os que os ofendem, praticando uma justiça igual à nossa.
A maioria dos apetites humanos objetivam quase exclusivamente coisas supérfluas e necessidades fictícias. É, com efeito, maravilhoso ver como a natureza se contenta com pouco e nos incita a pouco desejar. Não é a natureza que nos incita aos vinhos e nem ao que acrescentamos aos prazeres do amor. Esses desejos supérfluos, introduzidas em nós pela ignorância do bem e pelas ideias falsas, são tão numerosas que rechaçam quase todos os apetites naturais. Os animais são muito mais ordenados do que nós e se mantêm com mais moderação dentro dos limites que lhes impões a natureza.
Demócrito afirma e prova que a maior parte das artes nós aprendemos com os animais: a tecer a aranha, a edificar com a andorinha, a fazer música com os pássaros e a curar com certos bichos. Aristóteles acha que os rouxinóis ensinam os filhos a cantar. Daí o fato de perderem muito de seu encanto os que criamos em gaiolas e não aprendem com os pais. Podemos então deduzir que esses passarinhos melhoram seu canto pelo estudo e disciplina.
Quanto à força, não há animal no mundo mais exposto a risco que o homem. Sem falar da baleia, do elefante e do crocodilo que sozinhos podem dar cabo de muitos homens, os simples piolhos bastam para destruir uma ditadura, um animalzinho qualquer, um verme, pode acabar com a vida de um imperador no apogeu de sua glória.
Confira aqui vários pensamentos de Michel de Montaigne.
Outro filósofo que devotava grande admiração às obras dos animais era Arthur Schopenhauer (1788-1860). Então, considerei pertinente colocar aqui no final deste post um pensamento deste filósofo alemão sobre o tema.
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Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.