Espanto: origem do pensar
Acordamos em nossa casa, em nossa cama, tudo está no seu devido lugar. As coisas da casa são as coisas conhecidas de sempre, e nos preparamos para prosseguir nosso cotidiano. Espanto
Os problemas enfrentados são quase sempre os mesmos, a linguagem usada é a mesma, com a inclusão de uma ou outra palavra nova. O trânsito segue seu fluxo com engarrafamentos, barbeiragens e pequenas alegrias — como encontrar um bom lugar para estacionar.
Encontramos nossos amigos e familiares, contamos piadas, brigamos e nos divertimos. Tudo acontece conforme previsto. De certa forma, essa vida previsível é conforto que nos agrada.
Mas, de repente, surge um evento inesperado, um acidente trágico, um pássaro que pousa em nossa janela, um garoto na rua implora: “estou com fome, me ajude”. Um espanto assombroso toma conta de nós, mas não de todos, apenas daqueles que levam consigo um incômodo misterioso. No espanto, nasce o filósofo.
Espantados, passamos a questionar. Por que isso é assim e não de outra forma? Por que essa flor nasce e morre tão rapidamente? Por que ninguém ajuda esse garoto? O que é a morte? O que é viver? O que é amar?
Aquele que se espanta muitas vezes fica assombrado com algo que, para outras pessoas, é absolutamente normal. Isso é o filósofo: aquele que vê no óbvio algo incrível.
Quando ele consegue dar voz ao seu espanto, as pessoas se surpreendem. Se é algo que fere verdades estabelecidas, então o filósofo é chamado de louco ou condenado à morte como Sócrates e Giordano Bruno.
Uma vez que o espanto toma conta de nós, todas as coisas importantes tornam-se insignificantes ou assumem significado mais profundo.
Sócrates, Aristóteles, Schopenhauer e até cientistas como Einstein entregaram-se ao maravilhamento. Admirar-se com aquilo que ninguém vê é o primeiro sinal de que estamos pensando com profundidade.
Para os pensadores gregos, a origem do pensar é o thauma (trauma, espanto, perplexidade). Veja o que alguns pensadores disseram sobre isso:
Teeteto — E, pelos deuses, Sócrates, meu espanto é inimaginável ao indagar-me o que isso significa; e, as vezes, ao contemplar essas coisas sinto vertigens.
Sócrates — É absolutamente de um filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não tem outra origem…
Platão, Teeteto
Aquele que se maravilha sente que é ignorante; portanto, se foi para escapar da ignorância que estudou filosofia, é evidente que buscou essa ciência por amor ao conhecimento.
Aristóteles, Metafísica
Todas as obras produzidas apenas pelo instinto – por exemplo, as construções das abelhas, os ninhos dos pássaros feitos em formas variadas e sempre apropriadas – possuem uma perfeição que lhes é peculiar, pois correspondem precisamente às exigências de seus objetivos. Admiramos a profunda sabedoria que há nelas.
Schopenhauer, Escritos Filosóficos Menores
Não me canso de contemplar o mistério da eternidade da vida.
Albert Einsten, O Pensamento Vivo de Einstein
Espantar-se, contudo, não é suficiente. Do espanto surge a dúvida, o questionamento, a investigação. Quem se admira não se conforma com o que lhe é apresentado; acaba buscando novas respostas.
A filósofa alemã Hannah Arendt ficou perplexa com o comportamento do carrasco nazista Adolf Eichman durante o julgamento de Jerusalém. Ele acreditava que não tinha feito nada de errado — matar milhares de inocentes nas câmaras de gás — pois estava apenas cumprindo ordens.
Todos esperavam que Arendt o rotulasse de monstro, porém, chocou a todos ao afirmar que Eichman era apenas um sujeito comum que agia de forma irrefletida. Era alguém absolutamente normal.
Nascia assim o conceito de “mal banal“, onde Arendt nos mostra como são possíveis as grandes tragédias de nosso tempo graças à massa de pessoas que vivem sem pensar, conformando-se com a violência e a injustiça, como se fossem coisas normais.
O mal de nosso tempo, então, repousa naqueles que não se espantam com mais nada.
Autor: Alfredo Carneiro – Graduado em Filosofia e pós-graduado em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília.