Schopenhauer: “Quem pode erguer-se sobre as montanhas e depois calar-se?”
Em 3 de junho de 1804, o jovem Arthur Schopenhauer (então com apenas 16 anos) sobe o Monte Pilatus [perto de Lucerna, na Suíça] em companhia de um guia de montanha. “Senti uma vertigem quando vi pela primeira vez aquele espaço abrangente que se estendia à minha frente. […] Percebi que tal panorama, visto do alto da montanha, era tão extraordinário que me levava à ampliação de todos os meus conceitos anteriores. É tão diferente de tudo o mais que se torna impossível fazer uma descrição real de sua abrangência para quem não teve a oportunidade de vê-lo. Todos os objetos menores simplesmente desaparecem, apenas a grandeza pode ser entendida em seu conjunto. Todas as coisas se misturam umas com as outras; não se enxerga mais uma quantidade menor de objetos isolados, mas uma imagem imensa, colorida, brilhante, sobre a qual o olhar se prende por longo tempo, cheio de prazer.”
Arthur viu aquilo que mais o lisonjeava. A pequenez desaparece, as coisas correm umas para o interior das outras, tudo não passa de um torvelinho. Não se faz mais parte delas. Mas a grandeza conserva o seu arcabouço. E quem contemplar a grandeza e se afastar do torvelinho, também se torna grande. Não nos encontramos mais enlaçados aos “objetos isolados”, mas agora nos tornamos somente “os olhos” sobre uma “imagem imensa, colorida e brilhante”. “Olhar do Mundo” é como Schopenhauer chamaria mais tarde este prazer de encarar a distancia.
Finalmente, em 30 de julho de 1804 — quando a grande viagem já se aproxima de seu fim — chega a escalada da montanha Schneekopp [o Pico da Neve] na Silésia, então alemã, hoje na Polônia. A jornada leva dois dias. Arthur pernoitou com seu guia em uma cabana construída em um planalto intermediário, no sopé do cume mais alto da montanha. “Entramos em uma peça única cheia de pastores embriagados. […] Era insuportável; sua quentura animalesca […] produzia um calor candente.” A “quentura animalesca” dos homens amontoados naquele espaço exíguo — foi daqui que Schopenhauer tirou sua metáfora posterior dos porcos-espinho que se empurravam uns contra os outros para se defenderem do frio e do medo.
Retomada a jornada, e livre da espinhosa presença dos homens, Arthur atingiu o pico da montanha com o nascer do Sol. “Como uma bola transparente e com uma irradiação muito menor do que quando é contemplado lá de baixo, o Sol pairava no horizonte oriental enquanto subia lentamente e lançava seus primeiros raios sobre nós, espelhando-se primeiro em nossos olhares, enquanto a nossos pés a Alemanha inteira ainda permanecia na noite; e quando ele se ergueu mais alto, observamos como a noite progressivamente se arrastava para trás, cada vez mais longe e finalmente retrocedia para além do alcance de nossa visão sob a linha do horizonte ocidental.”
Ele já se encontra na luz, enquanto lá embaixo ainda domina a escuridão. “Via-se o mundo abaixo como envolto no caos.” Lá no alto, contudo, tudo é destacado com uma clareza cortante. E quando finalmente o Sol recai sobre o vale, não se revela ali simplesmente um vale risonho e amável, mas o olhar divisa “a eterna repetição e a eterna troca de montanhas por vales, a mudança de florestas em pradarias e a substituição das aldeias pelas cidades.”
Em uma armação presa à parede da choupana está exposto um livro de recordações, em que os viajantes podem perpetuar suas impressões. A anotação feita por Arthur foi descoberta nele:
“Quem pode erguer-se sobre as montanhas e depois calar-se?”
Arthur Schopenhauer, de Hamburgo.
Texto retirado do livro “Schopenhauer e os anos mais selvagens da filosofia”. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
Leia Também: